Leca, quando eu era criança tinha tanto medo da guerra que, ao ouvir o noticiário, cheio de notícias sobre a guerra fria, eu tinha dor de barriga e entrava em pânico. Hoje, adulta, continuo com medo da guerra, mas as reações físicas eu consegui controlar e o medo tem outros nomes, indignação e vergonha. Tenho a mesma perplexidade que você, mesmo sabendo que a guerra é estimulada pelo lucro de uns e pela sede de poder de outros, me causa espanto os que entregam suas vidas nas mãos dos fanáticos, dos loucos e dos maus, em nome, eu me pergunto, de que? O que é mais precioso que a vida?
Apesar disso continuo tendo esperança, assim como Carlos Drummond de Andrade tinha:
A Bomba
A bomba
    é uma flor de pânico apavorando os floricultores
A bomba
    é o produto quintessente de um laboratório falido
A bomba
    é estúpida é ferotriste é cheia de rocamboles
A bomba
    é grotesca de tão metuenda e coça a perna
A bomba
    dorme no domingo até que os morcegos esvoacem
A bomba
    não tem preço não tem lugar não tem domicílio   
A bomba
    amanhã promete ser melhorzinha mas esquece
A bomba
    não está no fundo do cofre, está principalmente onde não está
A bomba
    mente e sorri sem dente
A bomba
    vai a todas as conferências e senta-se de todos os lados
A bomba
    é redonda que nem mesa redonda, e quadrada
A bomba
    tem horas que sente falta de outra para cruzar
A bomba
    multiplica-se em ações ao portador e portadores sem ação
A bomba
    chora nas noites de chuva, enrodilha-se nas chaminés
A bomba
    faz week-end na Semana Santa
A bomba
    tem 50 megatons de algidez por 85 de ignomínia
A bomba
    industrializou as térmites convertendo-as em balísticos interplanetários
A bomba
    sofre de hérnia estranguladora, de amnésia, de mononucleose, de verborréia
A bomba
    não é séria, é conspicuamente tediosa
A bomba
    envenena as crianças antes que comecem a nascer
A bomba
    continnua a envenená-las no curso da vida
A bomba
    respeita os poderes espirituais, os temporais e os tais
A bomba
    pula de um lado para outro gritando: eu sou a bomba
A bomba
    é um cisco no olho da vida, e não sai
A bomba
    é uma inflamação no ventre da primavera
A bomba
    tem a seu serviço música estereofônica e mil valetes de ouro, cobalto e ferro além da
                                                                                                                                  comparsaria
A bomba
    tem supermercado circo biblioteca esquadrilha de mísseis, etc.
A bomba
    não admite que ninguém a acorde sem motivo grave
A bomba
    quer é manter acordados nervosos e sãos, atletas e paralíticos
A bomba
    mata só de pensarem que vem aí para matar
A bomba
    dobra todas as línguas à sua turva sintaxe
A bomba
    saboreia a morte com marshmallow
A bomba
    arrota impostura e prosopéia política
A bomba
    cria leopardos no quintal, eventualmente no living
A bomba
    é podre
A bomba
    gostaria de ter remorso para justificar-se mas isso lhe é vedado
A bomba
    pediu ao Diabo que a batizasse e a Deus que lhe validasse o batismo
A bomba
    declara-se balança de justiça arca de amor arcanjo de fraternidade
A bomba
    tem um clube fechadíssimo
A bomba
    pondera com olho neocrítico o Prêmio Nobel
A bomba
    é russamenricanenglish mas agradam-lhe eflúvios de Paris
A bomba
    oferece na bandeja de urânio puro, a título de bonificação, átomos de paz
A bomba
    não terá trabalho com as artes visuais, concretas ou tachistas
A bomba
    desenha sinais de trânsito ultreletrônicos para proteger velhos e criancinhas
A bomba
    não admite que ninguém se dê ao luxo de morrer de câncer
A bomba
    é câncer
A bomba
    vai à Lua, assovia e volta
A bomba
    reduz neutros e neutrinos, e abana-se com o leque da reação em cadeia
A bomba
    está abusando da glória de ser bomba
A bomba
    não sabe quando, onde e porque vai explodir, mas preliba o instante inefável
A bomba
    fede
A bomba
    é vigiada por sentinelas pávidas em torreões de cartolina
A bomba
    com ser uma besta confusa dá tempo ao homem para que se salve
A bomba
    não destruirá a vida
O homem
    (tenho esperança) liquidará a bomba.
Carlos Drummond de Andrade
A bomba destruirá a bomba e talvez não sobre mais nada, nem bomba nem homem. Ou não. Talvez, a bomba se esvazie e caia no ostracismo e em museus.
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