domingo, 28 de fevereiro de 2010

Continuando... (12)


Encostado à grande mesa da cozinha, o velho Jerónimo ficou a pensar no que estaria ela a conspirar para sair assim, quase todas as manhãs, tão cedo, sempre sozinha, a fazer questão de ser ela, e não um dos rapazes da estrebaria, a aparelhar o cavalo.
A sorte do demónio  - benzeu-se - é que naquele dia tinha coisas mais importantes para resolver.
Tinha a certeza que tinha sido ela a subir lá acima durante a madrugada.
A farinha varrida não deixava dúvidas, mas como não tinha nem uma única pegada não podia acusá-la.
E bastava uma, uma apenas, e aquela maldita criatura não poderia negar, ninguém tinha uma marca como a dela... O importante era que a porta permanecia bem trancada e, no que dependesse dele, continuaria assim até ao fim dos tempos.
Não deixava de ser curioso, reflectiu, como entre eles nunca se gerara nenhuma relação de empatia, não havia um laço de amizade, um toque de calor ou um minímo reconhecimento de afecto.
Toleravam-se, enquanto mediam forças, num combate surdo, mas nem por isso menos duro.
Ele já lá estava há muito tempo quando ela chegou. Mais uma, para lhe roubar o que era seu por direito.
Sim, porque era ele e nenhum dos outros quem devia ocupar o lugar.
Era ele o único que sempre fora fiel. Era ele o único em quem o General podia confiar.
Quando foi viver na mansão já sabia quem era, mas foi-lhe dito que nunca poderia aspirar a mais.
A ambição foi-lhe cortada no berço.
E, no entanto, a única coisa que toda a vida perseguiu foi um gesto de reconhecimento.
Era isso que continuava a movê-lo e era por isso que ela, que chegara tantos anos depois, se erguia como uma ameaça, uma afronta, um erro.
Disso não tinha o velho Jerónimo dúvidas, aquela mulher, que ele vira crescer, era a sua maior inimiga, uma sombra, uma ameaça, uma afronta...
Odiava-a.
Detestava-a na sua arrogância de fêmea, naquele modo independente e altivo, tão parecida com a mãe…Desprezava a herança que ela, sem saber, carregava.
Mas, em segredo, como um gato que se lambe, comprazia-se com as respostas que tinha.
As mesmas respostas pelas quais ela seria capaz de morrer… ou matar.



(continua)

Ajuste Musical ou Um poema de Ary

(Carlos do Carmo,"Estrela da Tarde")

Tempestade

Avisaram sobre a tempestade de ontem, admito que fiquei um bocadinho, não diria assustada, mas determinada a não sair de casa durante as horas mais críticas. E não saí. A luzes estremeceram duas vezes, mas trovões não ouvi, choveu muito e as árvores balançaram bastante com o vento. No meu jardim, as únicas flores que já apareceram, uma flor amarela que não sei como se chama, é parecida com um lírio mas nunca fiando... e mais umas três ou quatro, que me parece que são azáleas porque estão todas no mesmo arbusto e este arbusto tem mais uns quantos botões, sobreviveram à intempérie. Estão ali, maravilhosas, como se nada fosse. Quem disse que as flores são frágeis?

Da série poemas favoritos

..
In Passim
.
Tudo vai-se acabando, tudo passa
do que é ao que era; é tudo mais
ou menos uns vestígios de fumaça
no espaço do que deixas para trás.

E tudo o que deixaste ou deixarás
de manso ou de repente, sem que faça
diferença nenhuma no fugaz,
é assim como a garoa na vidraça:

intimações de lágrima delida.
Não valeu chorar nada. Nem te atrevas
a lamentar-te à porta da saída,

pois pouco importa a vida como a levas,
que ela te leva a ti, de despedida
em despedida, a uma lição de trevas.
.

poema de Bruno Tolentino / O mundo como Ideia. Editora Globo: 2002 / imagem: cena do filme "O sétimo selo", de Ingmar Bergman

TRATADO ABESTALHADO

Pensei cá comigo: de onde saiu tanta mulher pelada? É certo que estamos no verão e que moramos no país da contra-mão, mas isto certamente não explica o fenômeno, muito menos a sua exuberância e abundância. Sem trocadilhos, é claro. Conversando com amigos, descobri que talvez isto tenha a ver com o fato de sermos país tropical e de sermos notados (pelo mundo afora) como nação carnavalesca. Mas estas coisas sempre foram assim e, portanto, apesar de contribuir significativamente para o fenômeno, não o explica. O fato parece não permitir nenhuma pesquisa séria, comprometida com a verdade, posto que todos têm uma explicação, ou baseada em preceito religioso e moral ou de puro sarcasmo. A realidade, entretanto, mostra-nos todo tipo de invasão banalizadora da beleza e da graça da mulher. Mulher pelada, que Deus criou com tanta  qualidade e consciência, agora serve para vender cerveja, barco, apartamento, cosmético, shampoo e todo tipo de traquitana comercializável, até novela. Antes que me acusem de qualquer coisa, vou logo esclarecendo que existe, também, homem pelado de montão, ou seja, a falta de pudor é um fenômeno assexuado. Frase esta que dá o que pensar, haja vista para os acontecimentos recentes, documentados, ocorridos no seio da República. Talvez se lançarmos um olhar para o início do século passado, apenas para delimitar o período, veremos que naqueles tempos, mais românticos, o homem levantava apenas por cumprimentar uma mulher. Hoje, dependendo do assunto, o cidadão nem repara no seu redor. É tanto pouco pano desfilando para lá e para cá, que nem dá tempo ou motivo.
Por sermos seres pensantes, deveríamos privilegiar a imaginação, coisa que os poetas de outrora sabiam fazer como ninguém. Mas, nos dias de hoje, tudo é escancarado, sem necessidade de se exercitar o cérebro. As crianças e os jovens lêem pouco, nada imaginam, apenas sentam-se perante telas e, passivamente, absorvem todo tipo de propaganda subliminar. Assim é, também, com a saudável imaginação criadora, que se instala ao se divisar alguém do sexo oposto. Não sobrou nada para imaginar. Vê-se, apenas. A falta de leitura e a atitude passiva frente ao vídeo, não estimulam a imaginação e, pior, impedem que se pense, que haja reflexão. E nem estamos falando da  convivência, aquela que a TV já matou faz tempo, juntamente com a conversa, substituídas ambas pelo “plim-plim”. A falta de reflexão, por sua vez, impede a atitude crítica e o desenvolvimento intelectual, permitindo que se instaure todo tipo de desmando e canalhice na vida pública nacional. E ainda tem gente que classifica os textos de Geoge Orwell como ficção.


IMAGEM: escultura de TAO SIGULDA

Viver a Vida Numa Boa



"O verdadeiro sábio é aquele que, em qualquer circunstância, consegue esperar um pouco menos, lamentar um pouco menos e amar um pouco mais."

André Comte-Sponville

sábado, 27 de fevereiro de 2010

Até o Fim...de Chico Buarque


"Quando nasci veio um anjo safado
O chato do querubim
E decretou que eu estava predestinado
A ser errado assim
Já de saída a minha estrada entortou
Mas vou até o fim
"inda" garoto deixei de ir à escola
Cassaram meu boletim
Não sou ladrão , eu não sou bom de bola
Nem posso ouvir clarim
Um bom futuro é o que jamais me esperou
Mas vou até o fim
Eu bem que tenho ensaiado um progresso
Virei cantor de festim
Mamãe contou que eu faço um bruto sucesso
Em quixeramobim
Não sei como o maracatu começou
Mas vou até o fim
Por conta de umas questões paralelas
Quebraram meu bandolim
Não querem mais ouvir as minhas mazelas
E a minha voz chinfrim
Criei barriga, a minha mula empacou
Mas vou até o fim
Não tem cigarro acabou minha renda
Deu praga no meu capim
Minha mulher fugiu com o dono da venda
O que será de mim ?
Eu já nem lembro "pronde" mesmo que eu vou
Mas vou até o fim
Como já disse era um anjo safado
O chato dum querubim
Que decretou que eu estava predestinado
A ser todo ruim
Já de saída a minha estrada entortou
Mas vou até o fim..."

Da série poemas favoritos



L'Infinito

Sempre caro mi fu quest'ermo colle,
e questa siepe, che da tanta parte
dell'ultimo orizzonte il guardo esclude.
Ma sedendo e mirando, interminati
spazi di là da quella, e sovrumani
silenzi, e profondissima quïete
io nel pensier mi fingo, ove per poco
il cor non si spaura. E come il vento
odo stormir tra queste piante, io quello
infinito silenzio a questa voce
vo comparando: e mi sovvien l'eterno,
e le morte stagioni, e la presente
e viva, e il suon di lei. Così tra questa
immensità s'annega il pensier mio:
e il naufragar m'è dolce in questo mare.

Giacomo Leopardi

O Infinito

Sempre amei esta colina solitária
E esta sebe, que de tão grande parte
do horizonte me obstruem a visão.
Pois sentado a guardar, intermináveis
espaços por trás do monte, e o silêncio
sobre humano, e a profundíssima calma
mergulho fundo em meu pensar, onde por pouco
o coração não para assustado.
E ouvindo o vento sussurrar entre a folhagem, eu aquele
infinito silência a esta voz vou comparando: e me assalta a eternidade,
e as mortas estações, e a presente e viva, e seu rumorejar. E nesta imensidão
submerge meu pensamento:
e me é doce naufragar neste mar.

Tradução "capenga": Mariane Corbetta

Imagem: Picasa LAGUNA DE ROCHA PASTIZALES SOBRE EL SOL.JPG

Tal como uma pedra na minha cidade do cansaço

.













Tal como uma pedra na minha cidade do cansaço
Corpo quase infinito e assim, quase liquido
São nítidas ou límpidas, as minhas palavras em silêncio.
Ainda assim
Da alma que tantas vezes imitei
Quase nada ficou.

Ferida a calma da árvore que na memória se semeou,
A minha memória resistente no grão de terra desaparecido
Assim se inicia o regresso da viagem
Da penúltima viagem

Se nem das folhas
Nem dos livros que li e rasguei,
Nada ficou

Das palavras incertas
Escritas no papel da minha carne,
De que vale a minha escrita
Nem da pele
Nem do mar que reli e risquei
Nada ficou.

por Ricardo S., em Maio de 1993

|imagem: Riscos com cavalo, de António Quadros|

NÓS, MUITAS EUS

Um novo espaço para um post antigo.
Na linha do tempo múltiplo ou desdobrável.
Tudo o que foi será sempre.
"Nada do que foi será."
No espaço tempo do humano femninino, ontem o que fui,
reedita o que sou ou serei, num outro nível, numa outra volta.
Minha espiral gira no "vento solar"
E a "Estrela do Mar" brinca na "Terra Azul da cor do meu vestido"
Sonhando com o "Pequenino Grão de Areia que era um eterno sonhador"
A Mulher "Folder" não me abandona.
"Minha tristeza não tem pedigree".
Minha hereditária histeria vem do útero.
"Sonhar, mais um sonho impossível,
Romper a infinita prisão".
Nascer mil vezes MIM, que não nasce.
Quem nasce sou EU.



Condição mulher

As mulheres são engraçadas.
Pelo menos algumas, como eu mesma.
Tudo o que queremos é uma vida de romance e poesia.
Com flores nas datas e fora delas.
Com bombons bonitos e, se possível, uma jóia de vez em quando.
Claro, sem esquecer nosso reconhecimento e realização profissionais.
Então vemos loucos filmes de amor, paixão e sofrimento, e queremos imitá-los em nossas boas vidinhas.
E sofremos, sofremos, sofremos.
Eis a nossa escolha. Loucas que somos. Trágicas e dramáticas.
Como madames Bovary. Histéricas e insatisfeitas com tudo que não seja a pungência do anseio de ter sempre só o que não temos.

CRIMES -UM QUASE CORDEL

A noite ia alta, como os boêmios gostam, com lua plena e bebida a vontade. Festa grande, de gente bonita à beira de uma piscina decorada com dispositivos flutuantes e velas. Com a temperatura agradável, os vestidos estavam mais para aquela canção de Jorge Drexler em que se afirma que o vestidito violeta cabe todo dentro de uma noz. Muitos exibiam suas tatuagens em camisas abertas e o som ambiente, saído de caixas camufladas pelo jardim, era de um lounge agradável e dançante. Garçons impecáveis não deixavam faltar nada, quando um grito assustador chamou a atenção de todos. É claro que o grito foi agudo, oriundo de voz feminina, como não pode deixar de ser nestas ocasiões. Todos se voltaram na direção do mesmo e ninguém reparou na sombra que pulava o muro nos fundos do jardim. Casa grande, em condomínio fechado, de ruas sem iluminação, que propiciava a situação que se vai desenrolando. Qual? A do crime perfeito? Nem pensar, pois estes ou não existem ou deles ninguém sabe, o que pode não ser a mesma coisa, mas é. Seria a do crime insolúvel, ou será melhor ficarmos com aquele sem perdão? Decidiremos depois. Grupos de curiosos se formaram instantaneamente, alguns deles se movendo em bloco, de forma compacta, como a se protegerem de um mal maior. Pararam a música e logo apareceu o dono da casa, convenientemente instalado no último degrau do espaço externo contiguo à sala de estar, para pedir calma a todos e sugerir a continuidade daquele, antes alegre e descontraído, convescote. Credo, que palavra mais demodê, aff. Certo é que, ninguém estava disposto a dar continuidade à festa enquanto não se esclarecesse o ocorrido. Nestas horas, sempre, alguém chama as autoridades. Nem teria sido necessário, posto que se encontrava no local a mais fina flor do universo jurídico daquela comarca. Juízes, promotores e delegados, de ambos os sexos, comemoravam o aniversário de uma das filhas do proprietário daquela mansão. Aliás, universitária e ativista de causas sociais. Mas o que aconteceu? Cadê o corpo? Que corpo? Como assim? Não tem corpo? Foi atentado violento ao pudor, então? Atentado violento? Pode ser... É, não deixa de ser uma forma adequada de se colocar a coisa. Mas querida, o que te levou a gritar daquele jeito assustador? É que a Milena disse para a Maria trazer a pazinha... O quê?? Como assim? Repita exatamente o que ela disse! Não posso! Não pode? Não! Milena, venha já aqui! É uma ordem! Quê? Repita o que você disse para a Maria. Nada de mais, pai... eu disse apenas: “Maria... traz a pazinha para mim cortar o bolo...” Enquanto isso, o gato que havia pulado o muro, já estava de volta, trazendo na boca uma das carpas do vizinho.

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010


"Pois o belo muda, o saber muda, a inteligência muda, a medida muda. Mas o desejo é inalterável." frase de ... Rubem Fonseca

FLORBELA ESPANCA: TANTAS!


Gerana Damulakis

O poeta geralmente sofre da síndrome de ser vário. Walt Whitman vociferou: "Sou vasto. Contenho multidões". Fernando Pessoa inventou os heterônimos para multiplicar-se. E Mário de Sá-Carneiro chegou a dizer: "Morro à míngua, de excesso" e, sendo tantos "já não me sou". Enquanto o nosso Mário de Andrade proclamou ser trezentos, trezentos e cinqüenta, mais precisamente. Há qualquer coisa de Iago (em Otelo, de Shakespeare): "Não sou o que sou". Florbela Espanca completa: "E neste sonho eu já nem sei quem sou...".


A poeta portuguesa não escapou a essa tendência de sentir sua personalidade multifacetada. Fez-se princesa, castelã, sóror e, cada uma - como diz José Régio em estudo crítico - "morta, ressurgirá em todas as mulheres beijadas pelo homem que a amou". Como nos contos de fada, Florbela traz a concepção de viver encantada. Por tal, Jorge de Sena atenta que a poeta se transforma em seres de outros reinos, e crê que só terá esse encanto quebrado com a vinda da morte. A poesia de Florbela Espanca, como um diário, registra os estados de espírito, os seus vários: da ansiedade à depressão, do delírio da paixão à exaltação ilimitada. Daí ser terna ou voluptuosa, daí doar-se e se sacrificar ou apiedar-se com imensa comiseração de si mesma: "Tantas almas a rir dentro da minha!".


A poeta não alcança a saciação: "Sede de beijos, amargor de fel,/ Estonteante fome, áspera e cruel,/ Que nada existe que mitigue e a farte!". Sem preconceitos, essa angústia por tamanha vontade de amar está liberta de amarras, justamente para mostrar os conflitos da alma feminina e sua volubilidade: "Eu quero amar, amar perdidamente!/ Amar só por amar: Aqui... além.../ Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente.../ Amar! Amar! E não amar ninguém!".
Tantas mulheres em uma poeta.

Assim falou T.S. Eliot em Burnt Norton


O tempo presente e o tempo passado
Estão ambos talvez presentes no tempo futuro
E o tempo futuro contido no tempo passado.
Se todo o tempo é eternamente presente
Todo tempo é irredimível.
O que poderia ter sido é uma abstração
Que permanece, pérpetua possibilidade,
Num mundo apenas de especulação.
O que poderia ter sido e o que foi
Convergem para um só fim, que é sempre presente.
Ecoam passos na memória
Ao longo das galerias que não percorremos
Em direção a porta que jamais abrimos
Para o roseiral. Assim ecoam minhas palavras
Em tua lembrança.
Mas com que fim
Perturbam elas a poeira sobre uma taça de pétalas.
Não sei.

Continuando...(11)


– Mas por que não desistes dessa porta? Porque insistes em saber o que ela guarda. Talvez não passe de uma sala vazia…


O tom suave com que ele disse aquilo só serviu para a irritar. Levantou-se e começou a vestir-se.

– Nunca vais entender, pois não? Ambos sabemos que aquela porta esconde um segredo e esse segredo pode dizer-me quem sou.
Não agora, em que todos naquela casa me julgam tão louca como o General e têm tanto medo de mim que, quando me pressentem chegar calam-se imediatamente.
Mas antes, quando eu era criança, e as criadas palravam à minha frente como se eu não fosse mais que um móvel ou um vaso, ouvi coisas que não era suposto saber.
Nunca estranhaste que não houvesse sequer um retrato naquela casa? Todos os quadros são de paisagens ou animais, não há um único retrato de família.
Não há uma única fotografia. E que raio, o Benoliel, frequentava aquela casa, o fotógrafo mais famoso do país nunca tirou uma fotografia a ninguém ali? Nem uma?
E espelhos? Não te parece bizarro que numa mansão daquele tamanho não exista um único espelho?
Sabes quando vi um espelho pela primeira vez? Foi quando tinha dez ou onze anos e a minha preceptora alemã me levou à aldeia.
Fiquei como um selvagem, muda de espanto a olhar para o meu reflexo…
Quando regressámos a casa ela foi despedida, entre os gritos dele e o choro dela, não teve sequer autorização para me dizer adeus.
E tu vens dizer-me para desistir?
Eu preciso de saber e, nem que morra a tentar, vou descobrir.

Não era a primeira vez que tinham  aquela discussão. De pé, sobre a manta onde se tinham amado, ele tentou abraçá-la, numa tentativa vã de a serenar.

– Tens uma vida que a maioria das pessoas nem sequer imagina. Vives num palácio, rodeada de todos os luxos, tiveste uma educação a que só os príncipes podem aspirar. Quantas mulheres julgas tu que têm acesso a uma biblioteca como a tua, onde nenhum saber te é vedado? Imaginas as filhas do presidente a lerem Voltaire ou Sade?

Riu, na esperança que ela percebesse a piada, mas ela não lhe devolveu o riso.

– Mas não sei quem sou. Tudo isso é verdade mas não passa de uma prisão, porque ele nunca me deixou sair daqui. Nunca vais entender, pois não? Eu vivo prisioneira, nunca gaiola de ouro, mas prisioneira…

Devagar soltou-se do abraço do amante, gelada, rígida, como se já não estivesse ali.
Debruçou-se para apanhar as luvas e saiu sem olhar para ele.
Nú, ele correu até à porta do barracão e disse-lhe:

– Amo-te!

Mas ela já não o ouviu, ou preferiu não ouvir.


(continua)

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Da série poemas favoritos



Azul geral



enquanto a lua for calada e branca
eu serei sempre o mesmo, este esquisito,
este invisível vulto, apenas visto
quando o vento, de leve açoita as folhas.
enquanto a lua for calada e branca
eu serei sempre o mesmo, apenas visto
quando um raio de sol morre na lágrima
que se despede de uma folha verde.
eu serei sempre assim, apenas sombra,
apenas visto quando a voz de um gesto
colhe no bosque alguma flor azul.
apenas visto quando em fundo azul
voar a garça (o meu adeus ao mundo?),
enquanto a lua for calada e branca.


Ernesto Penafort, Manaus (1936-1992)

Continuando...(10)



– Lembras-te do dia em que nos conhecemos?
Levantou a cabeça do peito dele para lhe ver o rosto. Ele fingia dormir, mas tinha um sorriso de troça no rosto que o denunciava.
Ela beliscou-o, ameaçadoramente perto da virilha. Ele rodou sobre ela e esmagou-a com o seu corpo nu sobre a nudez dela.
Em silêncio fitaram-se, numa mistura de desafio, desejo e cumplicidade, naquele olhar que só os amantes têm.
– Claro que me lembro… parecias um bicho quando te vi entrar em casa, afogueada, cheia de lama, a tresandar a cavalo e a suor… Pensei quem raio seria aquela criatura...
Ela riu, rendida, debaixo dele. Com as pernas enleou-lhe as coxas e beijou-o com fome. Ele seguiu-a…


(continua)

Vivendo e Aprendendo




Eu gosto dos americanos porque eles adoram fazer "filme catástrofe". E a última novidade é o filme 2012, dirigido por Roland Emmerich e que já abocanhou US$ 65 milhões no último final de semana. A catástrofe é praticamente total. E o Rio de Janeiro foi chamado para fazer parte da tragédia. Um imenso tsunami vai varrer a cidade do mapa. É o fim do mundo que se aproxima, segundo previsões do calendário maia. Que pena, não vai ter copa de 2014 e nem olimpíada de 2016. E o pior, uma das eleitas "maravilhas do mundo", a imagem do cristo redentor que reina absoluta nos altos do corcovado, vai ser destruida, transformada em caquinhos, pelo fenômeno natural. Os deuses estão mesmo ficando loucos. Essa cena -- dizem -- tem efeitos especiais impressionantes.

E a arquidiocese do Rio de Janeiro - de olho em tudo isso -- resolveu interpelar a produtora Columbia e a Sony Pictures pelo uso indevido da imagem do nosso senhor, que pertence à igreja católica. Além disso, os nossos queridos padres afirmam que o filme catástrofe abala a fé católica e é prejudicial à imagem da igreja.

Eu vivo e aprendo. Aprendo e vivo.


SOLIDÂO

postado a pedido de Bípede:

A solidão é um tempêro,
um alongamento que acalma.
De uma espécie,
que alimenta a alma.
Uma fêmea,
quase um trauma.
A solidão é ser,
e é ambiente.
Um estado permanente
(quase ambivalente)
para se dividir com amigo.
Antes que o amor,
passe de quase,
a esquecido.

Batatas

Há um homem que passa por mim  todos os dias que não sonha como lhe estou grata. Ele não me vê, mas todos os dias eu sorrio ao vê-lo. Este homem, com o seu sorriso estampado no rosto logo pela manhã, enquanto puxa rua acima um carro de mão carregado com sacos de batatas que traz do mercado para o centro da cidade, faça chuva ou faça sol, faz-me relativizar todas as minhas paranóias e queixas da vida. Faz-me pensar que só tenho a agradecer e faz-me sorrir. E sorrir logo pela manhã e pensar que há vidas muito mais duras do que a nossa, e que ainda por cima são encaradas com um sorriso, faz-me muito bem.
Muito obrigada.

TEXTOS TESTES


Pois lá vinha andando ela, alegre, faceira e viciada em testes de revistas baratas. Nem comecei a narrativa e já tenho de abrir um parêntesis: vamos combinar que revista barata não é nada, assim, uma imagem denegrindo alguma coisa, mangalô pé de pato Whiskas Kit-Cat três vezes... nada disso: apenas que as revistas custam pouco. E não venha me perguntar a razão disso... Do preço. Se é por ter poucas páginas, muitos anunciantes e patrocinadores, ser subsidiada, ser projeto social de alguma ONG, sei lá... Custa pouco e pronto. Voltando...
Pois lá vinha ela andando, alegre, faceira e viciada em testes de revistas baratas. Por quê mudei “andando ela” por ela andando”? Pura distração eu acho... teste de estilo? Talvez, afinal ela é viciada em testes, ou não? Ah, este tipo de teste não pode.... certo, certo. Tá, Voltando...
Pois lá vinha andando ela, alegre, faceira e viciada em testes de revistas baratas. Isso não quer necessariamente dizer que a pessoa que é viciada em testes de revistas baratas, seja uma pessoa sempre de bem com a vida. Alegre e faceira. Pessoas alegres, por definição... bem, o que quero dizer que estar de bem com a vida não obriga ser alegre e faceira... Entendeu? Voltando...
Pois lá vinha andando ela, alegre, faceira e viciada em testes de revistas baratas. Mas... Faceira? Sim, faceira. Syrigma sibilatrix? Não! Pode ser até que ela se chame Maria, não decidi isso ainda (ou ela ainda não me disse), mas nem por isso tem algo a ver com a ave (Maria-Faceira) que anda a passos largos, bem calculados, como quem observa um perigo ou uma oportunidade.

Mas ela é assim? Paranóica e oportunista? Não! Credo... Voltando...

Pois lá vinha andando ela, alegre, faceira e viciada em testes de revistas baratas. Por qual dessas razões que a razão desconhece, revistas baratas sempre têm testes inúteis, fúteis e desconexos? Hã? Voltando...

Pois lá vinha andando ela, alegre, faceira e viciada em testes de revistas baratas. Sua saia fazia o movimento contrário de um rebolado cadenciado e contínuo. Algo como um Garrincha em câmera lenta, uma espécie de Canal 100 da Avenida Paulista. Isso, é claro, nada tem de haver com testes nem revistas baratas... ou tem? Claro que tem... é um texto barato, uma imagem barata, uma forma vulgar de despertar a atenção do leitor masculino... Quem sabe... Sei lá. Voltando...

Pois lá vinha andando ela, alegre, faceira e viciada em testes de revistas baratas.

Quantas vezes ela veio andando? 2 pontos

AMORE EM TUBO OU AMOR EM VIDRO











O casal é como a maionese. Há quem consegue na primeira tentativa e há quem não consegue nunca. E é uma zona quando dá pra trás. Dá vontade de remisturar. E, se  ao final consegue-se ser capaz de não mandá-la ralo abaixo na pia  mas recuperá-la in extremis, não será jamais uma maionese que valha grande coisa. E nem o casal. Que valha grande coisa. Eu, a maionese compro em tubo. Espremo enquanto tem e depois jogo fora. Não me agrado da embalagem de vidro. Porque quando está acabando devo raspar o fundo e isso me dá nervoso miudinho. O tubo é mais prático. Quando tá quase todo espremido chupa-se um pouquinho e se vem só ar com gosto de plástico,  entende-se que tá na hora de jogar fora. Fácil.
A minha amiga Margarida  sempre foi incapaz em matéria de maionese. Muito azeite. Muito ovo. Ao ponto que, para não ficar sem, comprava no atacado em tamanho maxi, tipo aqueles dos refeitórios. Mas agora vai casar. Inacreditável. Marga, nunca se sabe o quê esperar dela. É um pouco como os pedaços da estação espacial Mir  que podem cair em qualquer lugar. E casa-se com uma alma perdida, alto como uma tíbia de vaca mas até bonitinho. Chamam-no Ikea, por conta dos traços suíços. Bonito burro.  Aproximando-se da sua cabeça pode-se escutar  os ecos dos gongos. Bate a meia-noite. Marga me mostrou o seu vestido de noiva. Com aquele negócio sobre si parece uma bomboniere de vidro de Murano. Soprada quente. Um enorme abacate. Uma gigantesca pastilha Valda. Diz que assim se parece com uma das fadinhas da Bela adormecida , mas não sabe se a Fauna, a Flora ou a Serena.
Vestido branco era demais. Marga tem duas certezas na vida  e uma é que não é mais virgem. Numa coisa a invejo. Na lista de presentes. Aqueles maravilhosos aparelhos de jantar. Aqueles deliciosos copos coloridos. E também a panela de pressão. Daquelas alemãs que explodem somente se você tentar cozinhar uma bomba dentro. Eu me casaria só pra ter finalmente, copos  que não são aqueles da Nutella.
E para evitar que um dia, sabe-se lá como, me dê na cabeça de fazê-lo, quando varro a casa, me dou sempre uma varridinha nos pés. Assim. Por precaução.

Do livro: La pricipessa sul piselo de Luciana Littizzetto 
Tradução: Mariane Corbetta

"Solidão não cura com aspirina..." frase de Zeca Baleiro...compositor, cantor e poeta brasileiro

Da série poemas favoritos

Mal Secreto,
de Raimundo Correa


Se a cólera que espuma, a dor que mora
N’alma, e destrói cada ilusão que nasce,
Tudo o que punge, tudo o que devora
O coração, no rosto se estampasse;
Se se pudesse o espírito que chora
Ver através da máscara da face,
Quanta gente, talvez, que inveja agora
Nos causa, então piedade nos causasse!
Quanta gente que ri, talvez, consigo
Guarda um atroz, recôndito inimigo,
Como invisível chaga cancerosa!
Quanta gente que ri, talvez existe,
Cuja a ventura única consiste
Em parecer aos outros venturosa!

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Ajuste Musical ou um Poema de amor

(Simone de Oliveira," No teu Poema")

Continuando...(9)




Depois daquela explosão de ira e ódio, o General serenou.
Embalado pelo balanço do navio, navegava dentro de si, pelas memórias da vida que aos poucos sentia escorrer-lhe pelos dedos.
Todo o seu poder era nada perante a morte que adivinhava perto.
O poder que detinha, o temor que o nome dele acordava, as riquezas, nada…eram pouco mais que pó, perante o corpo que cedia ao peso dos anos e dos excessos.
Exausto, era como se sentia, mas ainda forte o suficiente para fazer o que tinha de ser feito, antes do fim.
Subitamente, lembrou-se da sua primeira mulher.
Pobre Cândida.
Tão loura e pálida, na sua magreza de tísica. Tão delicada aquela criatura amedrontada, que parecia feita de cera.
Recordou-a no leito nupcial, perdida naquela cama imensa, assustada pela expectativa e na ignorância do que a esperava.
Foi sempre uma mulher dócil, submissa.
Entregava-se aos seus ímpetos de macho com o mesmo deleite que uma ovelha a caminho do cutelo, mas não se queixava.
Ele chegou a acreditar que era com alívio que ela lhe perdoava as traições.
Nunca a amou mas, à sua maneira, gostou dela.
Cândida, que fez sempre por agradar-lhe, foi uma boa esposa. Talvez tivessem chegado a ser amigos, companheiros e cúmplices, se tivessem envelhecido juntos. Ou então não…
A última vez que a viu com vida estava deitada num mar de sangue, rasgada e exangue, com a criança a brotar-lhe pelas coxas, os olhos dilatados e o cabelo, muito loiro, empapado em suor. Nem assim, soltou um gemido mais forte. Morreu a parir e não chegou a ver o filho.
Cândida, tão pura quanto o nome, foi uma nuvem branca num céu de Verão, tão diferente do furacão que se seguiu.


(continua)

Noite fria com neve.

Na noite fria com neve famintos terráqueos escondem-se em buracos muito quentes. Loiras nada geladas seduzem homens sedentos de prazer em frente aos seus maridos e com satisfação plena. Para cada mulher há cinco homens devotados. Estão todos nus e sem constrangimento algum. Há uma loira com um corpo perfeito, cabelos lisos pelo ombro, olhos azuis e um sorriso que enfeitiça. Ela é inteiramente rosa e dourada. Move-se lentamente com uma naturalidade rara. Senta-se displicentemente enquanto massageia as pernas e os pés. De repente alonga uma perna e dobra a outra. Sinto um calor subindo. No andar de cima, com os olhos vendados por uma toalha branca uma outra mulher esbanja prazer e sensualidade. Deve ter sido linda quando jovem. Mesmo na meia idade, os seios fartos e claros convidam ao toque. Atada no balanço de couro sua posição é de aparente vulnerabilidade. Suas entranhas estão a vista, sua cabeça está dependurada. Seu marido a apóia com a farta barriga enquanto acaricia os seus mamilos com os olhos fechados e com visível orgulho. Do outro lado, homens mais jovens a examinam como quem descobre algo novo, nunca visto. É uma mulher diferente. Provavelmente da idade das suas mães. Fico magnetizado por ela também. O que o casal busca é difícil precisar. Recuperar uma paixão, redescobrir a libido perdida, simplesmente sentir um pouco de vida, de juventude, de calor, provar que ainda são desejáveis. Não deve ser nada disso. O local não permite perguntas. Somente alguns gestos. Vários homens a tocam, sem contudo atreverem-se a ir além. Silenciosa ela se deixa tocar sem nenhum movimento ou ruído. Desconfio que ela esteja fingindo, pensando nas compras da casa. Mas, mesmo atada no aparelho sadomasoquista, mantém muito bem o controle da situação. Ele a ama profundamente nesse momento, mas seu prazer não é visível. Acho que esse prazer não importa mais. O que importa é vê-la tão desejada e o amor dela por ele, capaz de qualquer ato para mantê-lo submisso ao seu lado.

Xixi na Piscina




A "bípede que fala" fez o post "Água Viva", que está bem ali abaixo. O assunto tratado não é sobre o curioso bicho que nos queima quando tomamos um refrescante banho de mar -- e que aqui, no sul do Brasil, se chama "Mãe D'água"-- , mas sobre certas 'subjetividades' ao redor de uma piscina e, lá pelas tantas, a querida bípede falou sobre xixi na piscina. Juro que isso me causou um certo impacto. Fazer xixi na piscina é como jogar lixo no chão, como deixar toco de cigarro no piso da repartição. Atire a primeira pedra aquele cristão que nunca fez xixi na piscina! Eu confesso - bem envergonhado - que já fiz xixi na piscina. Lembro uma vez, quando adolescente, que despejei aquele líquido quente nas águas límpidas e azuis do clube, causando uma boa sensação de alívio e, ao mesmo tempo, de angústia, porque morri de medo de ser descoberto. Comentava-se, na época, que havia uma substância química de coloração amarela que denunciava o banhista infrator. Dizem que é lenda, que essa química não existe, mas todo o cuidado é pouco.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Água viva


Não, não é o que parece. A roupa está molhada, mas a alma, seca. A rebeldia dos cabelos aconteceu antes da queda. Eu já andava torta e descabelada. O vestido sempre foi da cor da pele, da minha pele sem sol, do meu jeito discreto, sem salto alto, só de sapatilhas e sem pontas, macias feito geleia para evitar as dores, os tropeços e os soluços. Eu soluço e me engasgo e ninguém diz nada. Estão todos ao redor da piscina, dentro da piscina, fazendo xixi na piscina, e eu aqui, flutuando por baixo, porque isso não é um mergulho, um nado no nada. Eu sou como uma pérola sem ostra. Alguém roubou o casulo, e a metamorfose ainda andava pálida e desfocada feito minha figura enrolada em rendas e tecidos antigos, antigos e sem projetos, ao alcance de mãos vorazes, de dedos metalizados, loucos para me desfilarem perto de um crematório, mas não, não é o que parece. A roupa está molhada, mas a alma, seca.
Postado por Bípede Falante, por engano, dentro da conta do Mínimo Ajuste. Sorry...

CENA 3, TAKE 4

Vicente já fazia teatro, como se diz, mas nunca tinha tido a oportunidade de participar de um filme. Esta era primeira vez.
Foi selecionado entre centenas de candidatos, sabe-se lá por que critério. De qualquer maneira um filme de baixo orçamento e feito por gente séria. Bom para qualquer curriculum. Ou seja, filma-se pouco e aproveita-se ao máximo na montagem.
Conseguiram uma casa de shows para fazer a locação da cena em que o Vicente ia participar. Podiam ficar com o local um dia inteiro mais uma madrugada. Entre todos chegarem, se arrumarem, montarem equipamentos, conferirem as marcações e os textos e, ao final, desmontarem a parafernália toda, sobrou pouco tempo para as filmagens em si. Todos os extras, uns sentados outros em pé ou circulando, imitando a vida em um bar. Quando chegou a vez do Vicente, a câmera fez um plano geral e depois fechou no Vicente que subiu na mesa e declamou: “Sacra! Louca! Vaca! Louca, Vaca sacra! Louca sacra, Vaca! Sacra vaca louca!” Neste instante levou um tiro na testa e caiu para trás, ficando de costas sobre a mesa, com a cabeça pendurada para fora. É claro que o tiro será posterior e digitalmente inserido. Acreditem, ficou muito bom. A partir daí, o papel do Vicente era ficar ali, imóvel, morto. Deram um close nele, estava ótimo, com os olhos ebugalhados e cara de espanto. O diretor adorou. O que ninguém viu foi o que o Vicente precisou ficar olhando enquanto não terminavam a cena. Pois é, lá no mezanino, tinha a garota que manipulava o microfone de som ambiente. Aquela coisa, com uma vareta incrívelmente comprida e um microfone com espuma na ponta. O detalhe é que a moça estava de microsaia e sua calcinha fio-dental resolveu se enrolar toda e invadir algumas dobrinhas. Se via quase tudo, pelo menos do ponto de vista do Vicente e o que ele não conseguiu ver, tratou de imaginar. Nem precisou de muito esforço. Posso garantir que os olhos dele deram até zoom.
Acontece que este tipo de coisa, além de não passar batido, costuma ter conseqüências. Não fica impune. Pronto, lá estava o Vicente, o morto, tendo uma ereção. Até hoje não se sabe se foi sorte ou azar, mas o fato é que ninguém viu. Montaram o filme, fizeram lançamento, distribuição e o diabo a quatro, inclusive um pequeno coquetel para a imprensa. Nem os críticos, que só falaram mal, perceberam. Mas, sempre tem um desocupado que vê. Depois que a ereção foi notada pela primeira vez, a notícia se espalhou e o filme se transformou na maior bilheteria do ano.


IMAGEM: MUSEU DO NEON

Continuando...(8)



Dormiu mal, muito mal. Levantou-se ainda o sol não tinha rasgado por completo o véu da noite.
Vestiu o fato de montar e desceu até às cozinhas onde deu de caras com o velho.
– Acordou cedo. Não dormiu bem?
Velhaco, pensou, estás a atirar-me corda, mas não julgues que me apanhas assim.
– Dormi maravilhosamente. O sono dos justos, sabe o que é? Vou montar. E não, não é necessário chamar ninguém, eu aparelho o meu cavalo.
Voltou-lhe costas e saiu para o ar fresco da manhã sem lhe ter dado tempo de resposta.
Adorava o cheiro dos cavalos e do feno limpo. O odor enjoativo do couro misturado com o calor doce dos animais acordava-lhe o gosto pela caça.
Desde pequena que caçava.
No inicio toda a gente comentava, à boca pequena, quando o General a levava nas caçadas.
Toda a gente comentava, mas ninguém se atrevia a dizer nada.
O General não era homem que gostasse ou permitisse sequer, ser questionado.
Foi ele que a ensinou a disparar e nisso, nunca ela o desiludiu. Atirava melhor que muitos homens. Aliás, havia poucos que disparassem tão certeiros.
Era nas caçadas que ela se sentia realmente próxima do General como se, montados em cavalos, nas corridas velozes ou nas emboscadas aos veados, envoltos na lama e no cheiro a pólvora, comunicassem verdadeiramente e houvesse uma ténua ligação entre eles.
Cresceu a desejar ser um rapaz. Se fosse um homem talvez percebesse melhor o General, talvez pudesse seguir as pisadas dele, tornar-se num militar de carreira, correr o mundo, sair dali…ser livre...
Cresceu a desejar ser um rapaz até àquela tarde em que ele foi recebido no salão para entregar uma mensagem urgente ao General. Naquele dia, quando o viu, percebeu o que era ser mulher…



(continua)

Ó PAI


Ó Pai
-----------Gerana Damulakis

--------------"Por que me abandonaste?"
-----------------------Cristo

Qualquer dia, qualquer mês
e estou só.
Só as estrias de luz mostram o ar
carregando suas massas de partículas
redondas, tantas quantas são
as pessoas da multidão.
Lá fora é onde deve haver alguém.
Por que tarda?
Estou em plena tarde
sem perder o relógio de vista.
Preciso dizer-te isto, meu Pai,
que já vivo a minha tarde
e tenho medo.


Foto: meu grego (meu pai) e eu. A foto está em preto e branco porque não tenho mais este colinho em cores. Meu pai morreu faz pouco tempo, sem doença, de acidente (uma dor mais insuportável ainda).

o lado esquerdo de uma mulher


Cara Isabel,
Ao ler este mail é essencial que tenha fairplay, como acho que tem. Mas é fundamental que não olhe para mim. E este momento é decisivo. Continue, por favor, mas não olhe para mim. Ficaria embaraçado, talvez. Apesar de eu, aqui na empresa, por força das circunstancias, ser o homem que mais longamente olha para si. Ou melhor, ser talvez o único homem que olha para o seu lado esquerdo oito ou mais horas por dia. Estamos a palmos de distância um do outro. Duvido, aliás, que alguém, alguma vez, olhasse para o seu perfil como eu olho, quase há quatro meses. Todos os dias úteis. E não é fácil. Olhar diariamente para o seu lado esquerdo, principalmente quando a janela que está à minha frente (do seu lado direito) deixa, a determinados dias e a determinadas horas do dia, passar uma luz que a desvenda, tantas vezes, sensualmente. Não me leve a mal. Mas é assim há quase quatro meses. E hoje resolvi-me a dizê-lo. Hoje, vou falar-lhe do seu perfil. Do lado esquerdo. Portanto, isto não é um mail de trabalho, como vê, é só destinado a si.


O sinal que tem, um pouco abaixo do maxilar, um tanto distante das maças do rosto é o primeiro que me chama a atenção. Consigo perceber a veia que passa junto ao seu queixo e depois desaparece. O seu queixo tem um traço elegante. Gosto também do perfilar das suas pestanas, da ponta do seu nariz e das rugas de expressão que se distendem na sua testa como linhas de minas 0,5, às quais não consigo ver o fim.
Quando sorri, as suas maças do rosto são a saliência mais sexy da sua face. Quando o usa, gosto particularmente do seu decote. Como imagina, é o perfil do seu seio esquerdo, que melhor conheço. Faz-me sempre lembrar de um trecho que li cujo o autor, nesse momento, nunca me vem à memória.
Quando traz uma camisa de linho, a luz, deixa perceber ligeiramente o seu soutien. Há um cuja cor não consigo determinar. Mas é escuro. Não é preto. Percebem-se os tons.
Acho graça à forma como as migalhas das bolachas, quando as come à secretária, caem no seu decote. E sempre que bebe o iogurte líquido fico na expectativa de a ver com um bigode branco. Mas nunca aconteceu. Gosto muito do seu pescoço e, nestes quatro meses, nunca a vi sem brincos. Daqui, da minha secretária, o seu pescoço pede beijos. Sabia disso? Porque é liso e parece muito macio. Como se chamará o seu perfume, que nem sempre usa, e cujo o aroma se intensifica aqui, do lado esquerdo.
Gosto das suas mãos, Isabel. A esquerda, é a minha preferida. Ao contrário da minha, não tem aliança. A que observo melhor, é a esquerda. Que surpresa. As unhas são perfeitas e, às vezes, a cor com que as pinta, combina com o seu batom. Penso em quais serão os desejos atados no seu pulso esquerdo, na fita do Senhor do Bonfim. Gosto da forma como desentala o cabelo, quando veste o blaser. Fico aqui a observar o seu lado esquerdo, enquanto o veste, quase sempre, em frente à sua secretária. Gosto das pontas desalinhadas do seu cabelo do lado esquerdo, da forma como o tenta arrumar para o lado direito, com a mão direita. Raramente usa a esquerda.
Gosto da forma como de vez em quando sorri para o seu computador. Gosto também de a ver séria. E já reparei que só fala ao telefone, do lado esquerdo.
Às vezes, quando a sua cadeira desliza na direcção da minha secretária ouço sem querer as suas conversas. Ouço nitidamente a pessoa que está do outro lado, a falar ao seu ouvido esquerdo. Quando a cadeira desliza para traz, cruza a perna direita sobre a esquerda, raramente o inverso. E quando analisa papeis, por momentos, deixa a mão esquerda pousada sobre a haste esquerda dos seus óculos. Infelizmente, raramente vejo as suas pernas. Nem a esquerda, nem a direita. Da cinta para baixo, bem que podia ser uma sereia. Ainda bem que não é.
Um pouco acima do seu cotovelo esquerdo existe uma disposição interessante de sinais. O seu ombro esquerdo…tanto que eu poderia dizer sobre o seu ombro esquerdo. Foram muito poucas as vezes que em todo este tempo vi os seus ombros descobertos.Poderia dizer outro tanto sobre o seu lado esquerdo. Mas começo a achar-me um imbecil. Só espero que não pense que os homens são todos uns sacanas. Não. Não são todos. Os piores talvez sejam os mal - casados como eu. E os mal-amados como tantos. E agora pode apagar este mail e fazer de conta que não o leu, que não lhe chegou. Ou, passar a tratar-me por tu e dizer:
António, não queres tomar um café? E, com inteligência, pode pôr-me no meu lugar.
E talvez eu deixe de observar, tão obstinadamente, o seu lado esquerdo.

Aeroportos!


Nada como entrar num aeroporto. A mim causa-me uma sensação óptima. Seja por ir de viagem, seja pela azáfama que encontramos, seja pelo que for é um mundo que me fascina. Ver tanta gente em constante movimento, imaginar tantos destinos. Eu, que tenho a sorte de já contar com muitas horas de voo, nunca me canso de apreciar ao máximo a passagem por um bom aeroporto. Pela positiva destaco Changi - Singapura e Chep Lap Kok - Hong Kong.
Pela negativa o Cairo, uma desgraça, e São Francisco, um caos, que em grande parte se deve à paranóia que tomou conta dos americanos.
Não posso deixar de referir, pelo enquandramento e beleza,
Koh Samui na Tailândia.

E pronto, está lançada a minha participação no Mínimo Ajuste.
Boa tarde a todos. Ou bom dia, conforme o fuso horário.

Continuando...(7)



O General estava debruçado na amurada.
De olhos fechados sentia a brisa salgada do Atlântico e era como se fosse jovem outra vez.
Perdera a conta das vezes que atravessara aquele mar.
Poucos homens da idade dele teriam aguentado aquela última travessia.
Ele não era um homem vulgar, mas estava velho, e sabia que nunca mais voltaria ao Brasil.
Foi despedir-se das suas fazendas. Dizer adeus ao açúcar que os brasileiros traziam no corpo e na voz.
Por mais que gostasse daquela terra tinha de ir morrer no chão que o viu nascer.
Além disso, já estava longe há mais de seis meses e os abismos de casa insistiam em chamá-lo.
Estava velho, cansado. Soube-o quando o corpo das mulatas deixou de o acordar.
O General soltou um sorriso amargo, mais um esgar de fel que um sorriso, ao recordar os corpos gementes de tantas mulheres que teve e murmurou:

-Tive todas as que o meu desejo reclamou, umas que se entregaram dóceis, outras que tomei à força, mas nunca me prendi a nenhuma como àquela rameira. Rameira? Cadela maldita que mereceu bem a morte que teve.
Puta. Puta. Puta, gritou o General, enraivecido e partiu a bengala contra o mastro.

Ultimamente, ouvia os gritos dela e à noite acordava com lembranças de chuva, cães a ladrar, sangue, gritos…
Talvez fosse ela a chamá-lo para o inferno, porque era para lá que ia, disso não tinha dúvidas.
Ia? Não, no inferno, já ele estava há muito tempo.


(continua)

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Muito Prazer, "Curling"


Hoje foi um dia revelador, descobri algo importante: o "curling". Não, não é um jogo tipo paddle da vida que foi inventado recentemente. O "curling" tem história. É esporte olímpico de inverno desde 1924. A foto acima é de um jogo realizado no Canadá em 1909. Fiquei tão "vidrado" nesse inusitado esporte que acabei assistindo - inteirinha -   a grande e emocionante vitória das gurias da Suiça contra as meninas do Japão, nos jogos de Vancouver 2010.   No nosso país tropical, no nosso "pa-tro-pi", não existe nada disso. Um jogo desse tipo não daria certo por aqui. Somos muito emotivos, românticos, sanguíneos  e o "curling" é um esporte racional, frio e calculista. É um esporte dos povos do norte e nós somos do sul.

Boneca


Vem cá, boneca, ele diz, com os bigodes caindo sobre a boca sem lábios. Vem cá com o papai, ele ordena, acreditando que a palavra papai significa coisa boa, sem fazer ideia da quantidade de lixo embutido nas sílabas tão primárias. E ela fica ali, parada feito estátua, em pose de Jesus Cristo Super Star, certa de seu charme e esperteza, que a garota tem estrada, muitos anos de Sundown sem sol, porque a pele não queima como os neurônios guarnecidos por um traguinho. O copo tem de estar sempre cheio. A caderneta de telefones está sempre vazia. A caderneta de poupança está sempre vazia. Nada pesa o quanto vale. Nem a tal novela do Vale a Pena Ver de Novo esboça graça. Exceto ela, que não perde o rebolado e o bumbum generoso e perfeito para biquinis e para um vagabundo fio dental.


Continuando...(6)


As dúvidas cresciam como nuvens de temporal.
As suspeitas adensavam-se e a obsessão com o proibido, com aquilo que aquela porta maciça vedava, ameaçava tornar-se no único objectivo da sua existência.
Demorou anos a ganhar coragem para se aproximar. Aquela ousadia, se descoberta, equivalia à expulsão do Éden. Não que por ali a vida fosse um paraíso, longe disso…
Anos a debater-se com a tentação de ir além da porta e, num impulso incontido, quase que se denunciava.
Já entre os lençóis de linho, a tentar aquecer o corpo gelado pela nudez, pelo frio da noite e pelo tremor de excitação que a transgressão lhe soprava na pele, sabia que o sono tardaria em chegar.

A luz que passava pela fresta só podia significar uma coisa.
E a farinha no chão? Engenhoso e simples.
Ideia do velho de certeza, um cão de guarda, afinal. Patético e sabujo.
Não, pobre diabo, um triste, um títere nas mãos do General…

Os lençóis cheiravam levemente a alfazema.
Um cheiro que lhe acordava memórias longínquas, de contornos indefinidos… um colo quente, voz suave, mãos brancas de dedos longos, o anel… chuva, cães a ladrar, sangue, gritos…

Acordou com o grito rouco que não parecia ter saído de si, num mar de suor e lágrimas, o bater do coração descompassado e as memórias a fugirem-lhe depressa antes de as conseguir agarrar…


(continua)

Do Poema em Desordem



Cruzo as mãos
Sobre as montanhas
Um rio esvai-se
Ao fogo do gesto
Que inflamo

In, Promessa de Uma Noite, Mia Couto


Para a Ana C. Quevedo




Em bom rigor, não me peçam
Para inventar mais uma árvore!
- Sabendo até, que na mão
Pode acontecer um rascunho
De vida, qualquer coisa de viva cor em tela,
Prefiro inventar uma estrela,
Um ou dois rios, uma pedra, ou quem sabe,
Apenas mais uma rosa de todo o mundo,
Uma montanha, só!

Em bom rigor, é inútil a invenção,
Da milonga, da mirácula poesia,
De súbito pela raiz, arrancada,
Até desistir da terra, da silhueta
Que haverá na minha mão…
Reiventar o mundo ou uma palavra?
Assim como assim, talvez, mas
- Árvores, não! Esta Oliveira,
Aquela Tamareira de Damasco
Que foi sombra de Omeya, é sombra em mim,
Dá-me fruto em luz, sombra em giz.
Árvore é meu santo em senha, a minha raiz,
Meu caule e seiva, quase mineral
Cedro de Amarelo, Cipreste animal,
Ébano de Brasil, das mil cores do Anis.
Árvore é meu Limão, Meio-irmão Limoeiro,
É Magnólia Palavra Macieira,
É a minha única ramada da terra inteira.
É inútil inventar, em bom rigor
A árvore derradeira!

Pode acontecer um rascunho,
Um afluente de fogo e fumo,
Ribeiro agreste em estrela adormecida.
Pode acontecer uma mão até, que se cruza
De letra em letra, de cinza em luz,
Um fogo sem história, no incêndio do fim
Do mundo.
Pode tudo acontecer de novo, mas não
Peçam da palavra, da árvore mais invenção!
- Esta escuridão não é suficiente, nem renovo
Novo poema da criação, me seduz.

Não me impeçam! Invento qualquer coisa,
Mas uma árvore não!


Leonardo B., in a Barca dos Amantes

imagem: reprodução de Snakes and Earth, do livro Night Life of Trees
[foram das primeiras palavras que encontrei. na blogosfera. e dizem-me cada vez mais. obrigada Leonardo]

MANUAL DE SOBREVIVÊNCIA PARA DESCASADOS

Você é solteiro ou descasado? Este texto é para você, que enfrenta as vicissitudes da vida em vôo solo. Não que eu goste disso, mas faz parte da vida. Em muitas ocasiões me encontrei nesta situação. Não estou falando da solidão ou dos devaneios poéticos advindos dessa condição e sim, das pequenas coisas do cotidiano. Sim, estou falando de lavar louça, lavar roupa e passar pano. Coisas aparentemente simples. E o piór, é que a gente fica à mercê dessas máquinas malucas e temperamentais.
Falo da máquina de lavar, do microondas, do aspirador e da geladeira. Estas geringonças deveriam vir com operador. Elas, quando muito, apareceram lá em casa acompanhadas de um singelo folheto, dizem auto-explicativo, absolutamente ininteligível. Mais parece grego. Sinceramente, quase fiquei com inveja das mulheres que lavam roupa na beira do rio. Além da paisagem, infinitamente mais interessante na beira do rio, em relação à área de serviço, existe o fato de que a água lá é corrente. Na máquina a água está lá, parada, e se você erra a quantidade de sabão, além de não enxaguar direito ainda vai sair espuma pela tampa. Nada mal, se você aproveitar para limpar o chão em seguida. Mas, em hipótese alguma, deixe a sua máquina sozinha enquanto lava roupa. Aparentemente, estas máquinas foram feitas para facilitar a vida e  para que você possa fazer outra coisa enquanto ela (a máquina) trabalha. Na teoria, nenhum reparo. Na prática, um tremendo desastre. Imaginem vocês que deixei a minha máquina só. Ela derramou toda a água do molho em pleno chão. Ninguém me avisou que ela resolve tremer e que nesse processo, o cano sai da parede. Me senti um pato e só pude gritar: Quack!
Caso esteja com fome, o microondas chegou para transformar a sua fome em pesadelo. Os botões não obedecem e a comida ou sai dura que nem pedra ou te queima a boca. Eu digo que é melhor ir no buteco da esquina, pode acreditar. Comprei até um livro de receitas elaborado exclusivamente para o tal aparelho revolucionário. Apanhei feito um condenado e a comida nem o cachorro quis. Eu entendo razoávelmente de me alimentar e cozinhar, mas estou sériamente propenso a só comer comida que possa ser ingerida crua. Não tenho tempo para elaborar pratos sofisticados ou não; e cozinhar (no fogão) para uma só pessoa é ato de bravura e devoção. Achei que a comida congelada pudesse ser a solução, mas, aparentemente, só serve para tacar na  cabeça de algum ladrão, que desavisado ronde meus domínios.
Outro aparelho dos mais estranhos é a geladeira. Primeiro que ela transforma, sabe-se lá de que maneira, um gás que circula em ambiente hermético, em gelo. Só por Deus! Mas um belo dia ela resolve que não vai mais gelar nada e, para alegria dos vizinhos, decide botar o gelo, em forma de água, pela porta a fora. A água, que não é boba nem nada, vai escorrendo pelo chão até sair por baixo da porta de seu apê. Quando você chegar em casa à noite, vai descobrir, já pelo porteiro, do que o espera. E na ânsia de resolver, ao entrar pela porta e antes de acender a luz, você já voou longe por conta da fantástica combinação de chão molhado e sola de borracha. Um espetáculo. Conseguir a presença de um técnico, é outro tormento. E, quando vem, faz a maior sujeira só para trocar o tal gás. Uma sofisticada operação mambembe, isso sim.
Quando me falaram da máquina de lavar louças quase tive um orgasmo. Cheguei a mandar rezar missa para o inventor dessa geringonça. Mas, descobri depois de possuir vários modelos, que a ditacuja nada lava. Na verdade espalha os restos de comida do prato para a chicara e assim por diante. Me explicaram que era necessária uma espécie de pré-lavagem. Comprei luvas e escovinha. Nada mais ridículo. O que acontecia era que eu estava usando a máquina como escorredor e mais nada. Desisti desse aparelho e hoje lavo minha louça na mão, após acumular todos os utensílios possíveis na pia, sujos é claro. Esta relação estranha que tenho com a louça me fez doar quase todos os meus pratos e talheres. Assim, tendo poucos, não me preocupo ao ver que não tenho mais nenhuma colher limpa. Trata-se de uma operação rápida e segura, pois hoje só possuo três de cada coisa.
Quase ia esquecendo do aspirador. Já experimentou lidar com uma coisa dessas? Pois bem, além de fazer um barulho danado de ensurdecedor, às vezes ele deita toda a poeira que tem dentro, pelo cano afora. Nunca entendi como, mas que faz, faz. De resto é um aparelho amigo, pois evita aquela sensação de desenho animado, em que tem arbustos redondos levados pelo vento. A poeira é prodigiosa e rápidamente se transforma em pequenos novelos e vai passear pela casa. Chame o aspirador, que ele resolve. Agora, preste muita atenção ao trocar o saco que tem dentro. Você pode botar a perder horas de seu lazer, na lida de suas conseqüências.

IMAGEM: QUADRINHO NA ÁREA DE SERVIÇO DA CASA DO MAURÍCIO, PAI DA LULU...

domingo, 21 de fevereiro de 2010

Continuando...(5)


Tinha de sair dali depressa, antes que alguém subisse, senão estaria tudo perdido.
Não haveria explicação, nem pedidos de desculpa, nem choro, nem ameaças, nem gritos, nada…
Nada justificaria a sua presença ali, noite dentro, frente áquela porta. Nada justificaria a sua presença no único sítio do mundo onde nunca poderia estar. E, no entanto, ali estava, de cócoras, no escuro.
Quando percebeu que os passos do velho arrastavam os seus lamentos para longe, atreveu-se a sair daquela posição humilhante.
Levantou-se devagar e demorou algum tempo a recuperar a firmeza nas pernas.
O pé direito dormente dava-lhe um caminhar desequilibrado e dorido mas, naquele arrasto, encontrou a vela caída.
Foi só quando apanhou a vela que percebeu que afinal aquilo que lhe parecera pó, era outra coisa qualquer. Farinha? O chão estava coberto de farinha.
"Claro..."
 Cobriam o chão de farinha para terem certeza que ninguém ia até lá. O cérebro disparou. De repente as ideias começaram a gritar e a cabeça parecia que explodia.
Despiu a camisa de linho e com ela varreu o chão, assim iam saber que lá tinha estado alguém mas não saberiam quem.
“Pelas pegadas identificavam-me logo…Não me vou deixar apanhar assim.”



(continua)

Líquido

Perguntaram-me há dias se eu me metia na água nas praias aqui do Norte. Disse que não, claro que não, há anos que não. Meu Deus, que gelo, que martírio para os ossos, que desuso, que Inverno no corpo. Não, claro que não, Meu Deus que não. Agora, o corpo clama por águas mornas, menos vigorosas. Um caldo de azul transparente e à falta do mesmo, então a pontinha dos meus pés, mergulhados do Centro para baixo, em direcção a um Sul, que tem ainda assim (queixei-me) águas cada vez mais frias. Depois parei. Lembrei-me. Tive saudades. Tantas. Tive quase pena de mim, dos meus ossos e da minha alma, que gela por dentro, dentro de águas mais mornas que o corpo. Tive saudades. Dez anos de vida, onze, nove, doze, oito, treze, sete. Depois, não mais. Não menos. As águas geladas de uma praia chamada Árvore. Um areal que não terminava, como os dias que não terminavam, como as ferias que não terminavam. Tudo, num tempo que não tinha fim e que já se findou. Uma barraca azul num areal. Nortada às vezes até às duas da tarde. Um frio. A mãe, sentada no areal, recusando-se a abandonar a praia. Tínhamos feito uns 30 Km para ali estarmos e aguentaríamos. Agora, rimos desse tempo, tão insensata, diz ela. O pai de mão dada comigo pelo areal sem fim. Da nossa praia, até à outra praia, tão longe, havia ainda dunas e cactos que se camuflavam na areia. O pai avisava, mas deixava. Era herói o pai nesses tempos. Herói e forte e sábio e eterno. A água do mar era gelada, já se sabe e ainda assim, abeirávamo-nos, molhávamos primeiro os pés. Uma gritaria infernal. A água a chegar às coxas…um gelo a subir pela barriga, lábio roxos de frio…ás vezes, um sol bom, a arder pelos ombros e ainda assim, tanto frio, tanto medo, tanta vida, tanto riso, tanto de tanto e tudo e tudo. Não me apetece ir ao esse tempo outra vez, pelo menos, não hoje, que me lembrei de pintar os olhos e o rímel ainda está bom e ainda dará jeito para um café ao fim do dia. Depois, temos ainda tanto tempo, estamos todos vivos… (como se prende o tempo que foge?)
Não me apetece ir a esse tempo, porque sei que os que cá estão hoje, não estão já lá. Não irão lá. Porquê? Oh meu deus, porque a água é tão fria. Só por isso, ninguém me tira da cabeça que não é por isso. Só pode ser isso. Estamos mais sensatos e aquele frio todo faz mal, aquela esperança toda… aquela alegria toda (que saudade, meu Deus, tanta)… aquele frio, dizia. Culpa do frio.
Agora só praias de azul claro, menos vigorosas…e ainda assim, se um dia carregar um filho nos braços, será na praia da Árvore que mergulhará até os olhos rasarem de frio, de água, de amor. É o único lugar do Mundo, onde os pais serão pais até à eternidade que nesse tempo, dura simplesmente até ao entardecer das horas e basta para que tudo seja perfeito.

Acertando os meus ponteiros





Quando acertava os ponteiros do novo horário escutei uma velha canção do Billy Paul, cujo show assisti no teatro Leopoldina faz algumas décadas e, naquela época, achei o cara um porrezinho. Não que eu não tenha gostado, mas esperava mais. Vamos dizer assim, foi aquém da minha expectativa. E já com o horário novo no pulso invento de fazer algo diferente como, por exemplo, ouvir Coltrane ou Kaiser Chiefs, porque março está chegando e o Brasil tem de andar para a frente, as  festas de verão já foram embora e o ano tem de começar. Nós, que somos certinhos, temos  de produzir, consumir, estudar, trabalhar e também, of course, gozar os momentos mágicos. As festas de dezembro, as férias de janeiro e o carnaval de fevereiro passaram feito um relâmpago lançado por Zeus. E Dionísio ou Baco gosta mesmo de tomar uns porres de caipirinha de lima da pérsia. Mas, de agora em diante, com o horário atrasado, o rei da folia vai ter de entrar na ordem cósmica. Essa desesperadora harmonia. É preciso cuidar da pança, do colesterol e da vida profissional.


* foto - Race Track Fashions 1958