quinta-feira, 29 de maio de 2014

Um poema de Patrícia Laura Figueiredo


 

 
parei de me olhar no espelho
comecei a ficar mais bonita
 
virei os olhos pra dentro
me dei outra vida
 
cada dia enxergo mais um pouco
é no centro de mim que eles vivem
 
cada vez que com eles vejo
vem do mais profundo
um longo e antigo suspiro
 
parei de me olhar no espelho
pois era só ilusão o que via
 
cada passo dado então
me leva de volta ao começo
 
meu corpo balança teme
mas não me sinto perdida
é tanto um passo e depois outro
e sou toda esse passo
 
não me importa mais onde vou
mas quanto de passo foi dado
 
 
Extraído de Poemas sem nome - Poèmes sans nom - íbis Libris, Rio de Janeiro 2011

sexta-feira, 23 de maio de 2014

A similaridade do passado com a atualidade

Asger Jorn
 
 

Nesses pontos limiares da história exibem-se - justapostos quando não emaranhados um no outro - uma espécie de tempo tropical de rivalidade e desenvolvimento, magnífico, multiforme, crescendo e lutando como uma floresta selvagem, e de outro lado, um poderoso impulso de destruição e autodestruição, resultante de egoísmos violentamente opostos, que explodem e batalham por sol e luz, incapazes de encontrar qualquer limitação, qualquer empecilho, qualquer consideração dentro da moralidade ao seu dispor. [...]
Outra vez o perigo se mostra, mãe da moralidade - grande perigo - mas desta vez deslocado sobre o indivíduo, sobre o mais próximo e mais querido, sobre a rua, sobre o filho de alguém, sobre o coração de alguém, sobre o mais profundo e secreto recesso do desejo e da vontade de alguém.
 
 
Friedrich Nietzsche,  Além do bem e do mal (1882)

sábado, 17 de maio de 2014

Minha tristeza de porcelana



 

Minha funda tristeza, minha tristeza
de todos os momentos, disse: queres casar comigo?
Hoje estás tão esquiva e tão vulgar,
tão cotidiana, tão humana
minha pobre tristeza.
Ouve: quero beijar-te
toda; beijar-te dos pés à cabeça,
doidamente, num arrepio.
E possuir o teu pequenino corpo,
teu frágil e pequenino corpo,
onde se esconde uma alma tiritante de frio.
Minha tristeza de porcelana,
és como um vaso chinês, onde floresce, longo,
o lírio artificial da minha dor.
Se alguém te esfacelasse
se alguém, um pobre alguém,
 te apertasse entre os dedos,
e eu te perdesse,
que seria de mim?
Não tenho o luxo dos prazeres ricos,
não tenho o dinheiro que é preciso
para vestir a minha alma um pijama de seda
com que ela passaria o seu tédio na alameda
Vazia e branca da minha vida.
Vê, eu só tenho dois olhos
para te olhar, minha tristeza;
só tenho uma boca
para te beijar, minha tristeza;
só tenho duas mãos
para apertar as tuas mãos.
 
 
Carlos Drummond de Andrade