terça-feira, 25 de novembro de 2014

Cesta do piquenique

Amizade é tesouro raro. Em meio a muitos tesouros diferentes, cada um encontra um jeito de ser raridade. Como me faz bem pensar nos amigos que encontrei/encontro pela vida! Como me faz bem saber que continuo aberto e sentindo prazer em encontrá-los. Como sou grato por cada um que tenho, por cada um que tive. Amizade, amor... para mim não passam. Transformamos a maneira de lidar com o outro, a vida vai trazendo diferentes abordagens para o mesmo tema. Uns se mantém cada vez mais próximos e sabem o que temos comido, a festa que temos ido, a doença que atrapalhou a reunião, o riso com a besteira da televisão ou o choro com o resultado de exames. Alguns não sabem de detalhes, mas entendem o conjunto da obra e se fazem presentes em pequeninas-grandes coisas. Outros não fazem mais questão de nada mesmo, mas não deixam de deixarem rastros. Olho com cuidado para cada um que me toca, afeta... sinto muito pelas vezes que não pude corresponder ao que desejaram de mim, mas busco sempre ser inteiro, verdadeiro, até mesmo nas pequenas mentiras, aquelas que se forem verdades o outro não entende, como por exemplo não querer falar ao telefone e mandar dizer que está dormindo. Eu não me importo quando me dizem que não querem falar, mas tenho amigos que se zangam, então prefiro mentir para não zangá-los. Depois, quando estou de bom humor e se ele continua querendo falar, gargalhamos juntos. Gosto quando não se ofendem com minha necessidade de ficar sozinho, quando dou aquela morrida necessária. Também compreendo, não sem tristeza, que há os que não voltam mais, os que foram. Aqueles em que se rompe a tênue linha que tecemos juntos até um certo tempo e depois se parte. Aí, chegam momentos de coração partido, doído e lembranças. Aí, chegam os amigos que continuam e te enchem de alegria porque basta tê-los para isso acontecer.


Estou em tempos de saber o que sobrou na cesta do piquenique.

foto e texto Edu O.

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

"O Timbre e o Silêncio" em Crowdfunding



E finalmente o "passo de gigante" para que " O Timbre e O Silêncio" seja uma realidade muito em breve, ou não: 




através deste link de que deixo para a plataforma de crowdfunding, o apoio dos amigos, dos amigos dos amigos, de todos os que acharem por bem, este livro "vai acontecer"... porque há quem acredite desde o primeiro instante, porque há quem continua a acreditar que "a poesia é possível"! 

Tão grato por todo o apoio até agora, 
e mais que nunca, a todos os que possam apoiar e divulgar este, 

a que junto texto de apresentação de O Timbre e o Silêncio na PPL Crowdfunding: 

"Este meu primeiro livro, “O Timbre e o Silêncio”, com lançamento previsto para Abril de 2015, “acontece” com a mesma espontaneidade com que há cerca de cinco anos, iniciei a partilha dos meus textos poéticos no blog A Barca dos Amantes, lugar onde desde então publico com a regularidade possível, sendo que uma parte substancial se encontra neste primeiro volume que compreende os períodos de Outubro de 2009 a Outubro de 2010. 

Vim dizer-lhes o que sei sobre o trabalho dele, mas achei de maior valia alertá-los sobre a poesia que ele exerce. Saibam desde já que ele vem do horizonte, vestido nu, com as mãos limpas, o peito como janela, a janela em seus olhos, em pleno voo sobre o mar da palavra, tal qual desbravador de nossas emoções mais íntimas e chama-se Breve Leonardo, porém o nome não importa.”, escreve Betina Moraes no texto de contracapa do livro; e do que poderei sublinhar, do que importa, são as palavras, “reflexo”, contemplação e diálogo, o não temer “acontecer” palavra… neste caso em livro, primeiro livro, sendo que os próximos volumes muito dependerão do êxito deste “O Timbre e o Silêncio”, desse arriscar, desse acreditar que cada um de vós também escreverá nesta “luz de livro”, apoiando-o!"

Tão Imensamente Grato, a todos, a cada um de todos os "meus" que me tornaram possível chegar aqui, já tão perto...

Tão Grato!

segunda-feira, 7 de julho de 2014

Tisanas





75.

Era uma vez uma idade. Sentada à porta de casa apascentava os seus mortos. Quando eles se aproximavam demasiado separava-os com uma varinha. Sim porque o peso dos mortos para onde vai perguntava a idade. E nesses momentos envelhecia. Recolhia a casa e os mortos deitavam-se debaixo das árvores. Quando os ramos envelheciam os mortos perguntavam a idade para onde irá. E erguiam-se de sob as árvores.

80.

Era uma vez uma história tão impressionante que quando alguém a lia o livro começava a transpirar pelas folhas. Se o leitor fosse muito bom o livro soltava mesmo algumas pequeninas gotas redondas de sangue.


137.


Sentado à porta de casa um filólogo meditava a evolução das palavras. Em frente havia um precipício. De tantos em tantos anos caía lá uma palavra. Então o filólogo retirava a rede e colhia a palavra caída. não sei se isso se devia à extrema dificuldade da recolha se á extrema solidão do seu trabalho.


Ana Hatherly, em  A idade da escrita e outros poemas

sábado, 5 de julho de 2014

Em memória de Ivan Junqueira (1934-2014)




 
A mão que escreve



A mão que escreve é aquela
que não pôde, inepta,
agarrar o que lhe era
devido nesta gleba:
glória, insígnias, troféus
e algo enfim que soubesse
àquilo a que, incrédulos,
chamamos vida eterna.

A mão que escreve é aquela
cujas linhas, babélicas,
descumpriram o périplo
que lhes previa a esfera
de um trismegístico Hermes,
e que, por dolo e inércia,
deixou rolar a pérola
que arrancara do pélago.

A mão que escreve é aquela
que foi, além de réproba
e amiúde analfabeta,
muitas vezes canhestra:
enfiou por ínvias vielas,
urdiu frases sem nexo,
bateu-se em tolos duelos
e excedeu-se, sem rédeas.

A mão que escreve é aquela
que compôs alguns versos,
odes, canções de gesta
e elegias sem metro,
às quais ninguém deu crédito
nem ouvidos.
 Aquela que ergueu um brinde
 aos féretros
de uma insepulta Grécia.


Antes que o sol se ponha

   
Antes que o sol se ponha e seja tarde,
e o azul crepuscular me deite a garra,
e eu, nu, retorne à terra sem fanfarra
ou mortalha que o corpo me resguarde;
antes que murche a pétala na jarra,
e eu cale, para sempre, sem alarde,
e tudo o que me coube, por covarde,
não mais recorde a relva que se agarra
às últimas raízes da existência;
antes que eu cerre os olhos e adormeça,
e em minhas próprias células esqueça
as chamas que me arderam na consciência;
antes que a luz regresse e que amanheça,
e eu a mim mesmo já não me conheça.



Epitáfio


    De tua história, nada;
ou tudo, se quiseres:
entre uma e outra data,
a fábula de seres
nunca o tangível ,mas
o pássaro, o maralto
(o passo, não: o salto
em vão, fora do espaço),
o amor, vale dizer:
sua forma álgida e rara,
avessa à coisa amada
— e, súbito, colher
a morte, flor cediça,
dentro da vida.

quarta-feira, 2 de julho de 2014

terça-feira, 17 de junho de 2014

Valter Hugo Mãe, "A desumanização" (entrevista)




Narrado por uma menina de 11 anos, A desumanização apresenta a paisagem acidentada da Islândia, com ênfase nos longos braços de mar que avançam montanhas adentro. No livro, os fiordes não são apenas moldura para dramas humanos – são também personagem. Confira abaixo trechos da entrevista para o jornal O POVO, de Fortaleza, em abril de 2014

. O POVO – A Revolução dos Cravos, comemorada recentemente, melhora a disposição dos portugueses para encarar o cenário de crise no país e na Europa?

Valter Hugo Mãe – A Revolução dos Cravos é uma das datas mais dignas da nossa história. Acabar com uma ditadura é basilar em todos os lugares do mundo. E foi isso que aconteceu há 40 anos. O meu respeito pelo 25 de Abril (de 1974) é absoluto. A crise é ótima para todos os totalitarismos, todos os cretinismos, todos os despotismos e, se quiser até uma palavra que acho que nunca disse publicamente, para todos os “filhadaputismos”. Os 40 anos são efetivamente uma ajuda para que as pessoas percebam que há uma construção, que é a democracia, que recuou muito nos dois últimos governos, sobretudo neste governo que agora está no poder e que é um grandessíssimo monte de “merda”.

OP - A literatura é uma resposta ou um antídoto às asperezas do mundo?

  VHM - É tudo isso. Ela responde, ela questiona, ela anula coisas, intensifica outras. Literatura serve pra tudo. Eu tenho muita vontade de que os livros construam, que os livros tenham, em última análise, um resultado benigno, que induzam à cidadania. Talvez não seja obrigatório que os livros das pessoas sejam assim. Pra mim, ela (a literatura) não pode ser de outra forma porque eu não consigo ser de outra forma. Eu não quero ser uma pessoa de outra forma. E, como não quero ser uma pessoa de outra forma, não posso ser um autor oponente àquilo em que eu acredito enquanto gente. A literatura está para problematizar, mas talvez esteja também para salvar o mundo um bocado.

OP - Qual o lugar da utopia na sua obra?

VHM - É muito grande. Quem vive sem utopias vive um pouco sem razão. Quem não acredita no impossível não vai além da banalidade. E acho que o futuro está um pouco além das vivências, além de algo que nós ainda não descortinamos. Eu prefiro estar do lado dos que recusam o ceticismo. O ceticismo é uma espécie de desculpa pra não fazer.

OP - Numa das passagens do romance, a personagem Halla diz que “o inferno não são os outros. Os outros são o paraíso”.

VHM - Acredito muito nisso. Acho que o Jean-Paul Sartre não era propriamente um idiota, mas causou um enfoque demasiadamente violento. O inferno pode ser os outros ou pode ser alguém, mas os outros são categoricamente o paraíso. Não encontramos nada que nos justifique mais na vida do que outra pessoa. A vida não se faz por andarmos aqui sozinhos; se faz por sermos misturados com os outros. Não somos em absoluto nada. Nós somos misturados, e a nossa felicidade acaba sendo por presumir o outro, por supor o outro. Sozinhos não precisamos nem de ser felizes porque não precisamos de ser nada.

OP - Um dos grandes temas de A desumanização é a comunicação com as coisas do mundo (objetos, paisagens e animais). Às vezes, porém, esse mundo é muito mais vivo do que o dos personagens.

VHM – Neste livro eu quis que a natureza fosse uma personagem. Ela surge imbuída com uma capacidade quase pensante. O próprio pai da narradora diz, a certa altura, que a Islândia pensa. E a Islândia interfere no romance de uma forma muito decisiva através daquilo que os personagens esperam, do modo como as personagens interpretam os fenômenos da natureza. Isso é uma forma de espiritualizar aquilo que nos rodeia. É uma espiritualidade aquém da transcendência. Podemos acreditar na transcendência de que Deus existirá depois da morte ou além da vida. Ou podemos acreditar que a natureza em si é uma espiritualidade. A natureza já nos transcende bastantemente. Ela, por si só, já é muito mais do que nós podemos explicar, do que nós podemos entender, do que nós podemos dominar. Por isso ela escapa-nos. As personagens estão conscientes de que a natureza tem uma inteligência que participa decisivamente das nossas vidas. Eu tenho muito essa vontade de ter na natureza uma religião bastante.

OP - Por que escrever a partir da Islândia?

VHM – Por ser ao mesmo tempo um lugar cândido e agressivo, longínquo e solitário, mas habitado. É o espaço que indica a disciplina da vida. É uma noção de sobrevivência. Modos de contar

OP - A perspectiva feminina é privilegiada de alguma maneira em sua literatura?

VHM - Estou convicto de que a biologia reservou pras mulheres uma aventura muito mais impressionante. O homem não tem isso de dividir o seu corpo, multiplicar. O homem é um terreno muito mais estéril, que acaba por procurar realizações exteriores à sua fisicalidade. Uma compensação. E a mulher tem a maternidade. Enfim, não é absoluto, não é uma generalização que possa ligeiramente ser universal. Porque há mulheres que não quererão ter filhos e há homens que são mais impressionantes que as mães.

OP - A paisagem que você apresenta em A desumanização é eminentemente acidentada. O grande símbolo dela é o fiorde. O que ele representa literariamente?

VHM – O fiorde é mesmo isso. É o lugar do acidente, o lugar do improvável, o lugar do difícil. Aquele espaço não estava à espera de ser habitado por gente. É como se tivesse sido construído rejeitando a presença do ser humano. Mas, por contrassenso ou por casmurrice, o ser humano até ali conseguiu chegar. E ele representa essa capacidade estranha que o humano tem de chegar ao lugar impossível, tendo em conta que, paradoxalmente, não consegue resolver-se enquanto entidade destruidora. Eu penso um pouco sobre essa dualidade: de ser capaz do impossível, mas não ser capaz de se redimir em absoluto.

OP - Outro tema do livro é o duplo. De nascença, o homem é esse ser mutilado como o que surge nos seus livros

  VHM - Sim, acredito que todos nós vivemos embotados por uma comunicação incompleta. A companhia nunca é absoluta, nunca é possível. É uma construção. Estamos condenados a uma certa solidão, à impossibilidade de comunicar. A solidão é a condição sine qua non. E isso passa pela linguagem. Não há linguagem que transponha exatamente a solidão. A literatura é a crença de que um dia vai acontecer uma comunicação absoluta.

OP – Misturar poesia e prosa é uma preocupação constante no seu trabalho?

VHM - Eu acredito muito que os romances são feitos de poesia. Aquilo que faz com que um relato possa ascender à condição de literatura é o que vai buscar na poesia. Se o romance não tiver essa dimensão, nem é literatura. É um relato. É uma narrativa. A literatura constrói-se ao modo como se conta. É feita no modo como o resultado é alcançado. Esse componente eminentemente plástico é que transforma a épica em arte. Épica pode ser filosofia e pensamento, mas não é arte. O que eu proponho nos meus livros é imediatamente a poesia. É o modo de dizer aquilo. Quero encontrar um modo de contar histórias

A desumanização, Editora Cosac Naify, 160 páginas - Preço: 34,90

quinta-feira, 29 de maio de 2014

Um poema de Patrícia Laura Figueiredo


 

 
parei de me olhar no espelho
comecei a ficar mais bonita
 
virei os olhos pra dentro
me dei outra vida
 
cada dia enxergo mais um pouco
é no centro de mim que eles vivem
 
cada vez que com eles vejo
vem do mais profundo
um longo e antigo suspiro
 
parei de me olhar no espelho
pois era só ilusão o que via
 
cada passo dado então
me leva de volta ao começo
 
meu corpo balança teme
mas não me sinto perdida
é tanto um passo e depois outro
e sou toda esse passo
 
não me importa mais onde vou
mas quanto de passo foi dado
 
 
Extraído de Poemas sem nome - Poèmes sans nom - íbis Libris, Rio de Janeiro 2011

sexta-feira, 23 de maio de 2014

A similaridade do passado com a atualidade

Asger Jorn
 
 

Nesses pontos limiares da história exibem-se - justapostos quando não emaranhados um no outro - uma espécie de tempo tropical de rivalidade e desenvolvimento, magnífico, multiforme, crescendo e lutando como uma floresta selvagem, e de outro lado, um poderoso impulso de destruição e autodestruição, resultante de egoísmos violentamente opostos, que explodem e batalham por sol e luz, incapazes de encontrar qualquer limitação, qualquer empecilho, qualquer consideração dentro da moralidade ao seu dispor. [...]
Outra vez o perigo se mostra, mãe da moralidade - grande perigo - mas desta vez deslocado sobre o indivíduo, sobre o mais próximo e mais querido, sobre a rua, sobre o filho de alguém, sobre o coração de alguém, sobre o mais profundo e secreto recesso do desejo e da vontade de alguém.
 
 
Friedrich Nietzsche,  Além do bem e do mal (1882)

sábado, 17 de maio de 2014

Minha tristeza de porcelana



 

Minha funda tristeza, minha tristeza
de todos os momentos, disse: queres casar comigo?
Hoje estás tão esquiva e tão vulgar,
tão cotidiana, tão humana
minha pobre tristeza.
Ouve: quero beijar-te
toda; beijar-te dos pés à cabeça,
doidamente, num arrepio.
E possuir o teu pequenino corpo,
teu frágil e pequenino corpo,
onde se esconde uma alma tiritante de frio.
Minha tristeza de porcelana,
és como um vaso chinês, onde floresce, longo,
o lírio artificial da minha dor.
Se alguém te esfacelasse
se alguém, um pobre alguém,
 te apertasse entre os dedos,
e eu te perdesse,
que seria de mim?
Não tenho o luxo dos prazeres ricos,
não tenho o dinheiro que é preciso
para vestir a minha alma um pijama de seda
com que ela passaria o seu tédio na alameda
Vazia e branca da minha vida.
Vê, eu só tenho dois olhos
para te olhar, minha tristeza;
só tenho uma boca
para te beijar, minha tristeza;
só tenho duas mãos
para apertar as tuas mãos.
 
 
Carlos Drummond de Andrade
 

quinta-feira, 24 de abril de 2014

 
 
 
O senhor...mire e veja: o mais importante e bonito do mundo é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou. Isso que me alegra montão.
 
 
 
João Guimarães Rosa, em Grande Sertão - Veredas.

quinta-feira, 17 de abril de 2014

Gabriel García Márquez: 1927–2014


O meu primeiro Gabo foi Do Amor e Outros Demónios, que comprei a um vendedor do Círculo de Leitores quando andava no 2.º ano da minha licenciatura, em 1995. Fiquei tão fascinado que resolvi ler mais livros do autor, e fui lendo-os, mas demorei alguns anos a chegar a Cem Anos de Solidão, o seu romance mais famoso, e ainda mais a O Amor nos Tempos de Cólera, o meu preferido. Era um escritor consensual, amado tanto por especialistas como por simples leitores, como eu. E é, creio eu, um daqueles cuja obra permanecerá.

segunda-feira, 14 de abril de 2014

Sinal cifrado para enovelar o divino




trinta e dois ventos
da rosa dos ventos
vinte e um gramas
do peso da alma


oito países
a comandar a Terra
UM DEUS louco
pelas ruas bombardeadas



Bárbara Lia, poeta e escritora, autora de "Solidão calcinada". Assaí (PR)

Bailemos un tango !


quinta-feira, 10 de abril de 2014

Das utopias


 
 
Se as coisas são inatingíveis ora,
Não é motivo para não querê-las
Que tristes os caminhos se não fora
A mágica presença das estrelas.
 
 
Mário Quintana, em Espelho Mágico
 
 


sábado, 29 de março de 2014

POSSE





Nos compêndios escolares não se falava da pequena ilha
solitária e perdida nos mares do Sul.
Não passavam por lá os barcos dos brancos
e o povo seguia a sua própria lei
que no entanto não estava escrita em livro algum.
Homens e mulheres viviam nus e amavam-se sem complicações
e comiam peixes que pescavam em canoas feitas com troncos de árvores
e carne de animais caçados com setas certeiras.
 
Atletas e guerreiros dançavam ao som de búzios e tambores
e as bailadeiras ondeavam contorcidos ritmos lentos
na toada triste de instrumentos de uma só corda.
E tinham seus deuses, seus santos, seus sacerdotes, seus feiticeiros,
e moravam em cubatas cobertas com palmas das palmeiras.
 
Mas do outro lado da terra
um dia
senhores de cara grave assentaram-se à volta de uma mesa com mapas em frente,
 
falando de guerras,
de bases para aviões,
de pontos estratégicos
.
Então veio à baila a ilha solitária perdida nos mares do Sul...
Semanas depois um barco de ferro chegou e fundeou
nas águas tranquilas da baía...
E um escaler veio para terra com homens loiros vestidos de branco,
trazendo, entre outras coisas,
uma bandeira para a primeira afirmação imperial,
um chicote para o primeiro castigo,
um barril de pólvora para o primeiro massacre
e um outro de álcool para o primeiro comércio!
 
Jorge Barbosa (Cabo Verde)
 

sábado, 22 de março de 2014

Vibrações

J.R.Duran
 


 

Vibrar, viver.
 Vibra o abismo etéreo à música das esferas;
 vibra a convulsão do verme,
 no segredo subterrâneo dos túmulos.
 Vive a luz, vive o perfume,
 vive o som, vive a putrefação.
 Vivem à semelhança os ânimos.
 A harpa do sentimento canta no peito,
 ora o entusiasmo, um hino,
 ora o adágio oscilante da cisma.
 A cada nota, uma cor,
 tal qual nas vibrações da luz.
O conjunto é a sinfonia das paixões.
 Eleva-se a gradação cromática
 até à suprema intensidade rutilante;
 baixa à profunda e escura vibração das elegias.
 Sonoridade, colorido: eis o sentimento.
 Daí o simbolismo popular das cores.
 
  Raul Pompéia,  Angra dos Reis (RJ) 1863-1895 .

quarta-feira, 12 de março de 2014

Sino rachado



Lisboa, 27 de outubro de 2009
Olá!
Como nos grandes restaurantes, as cozinhas nas caves, a sala dos banquetes instalada no andar por cima – não era assim? Que honra trabalhar na produção do espectáculo de grandes banquetes!
Estou a referir-me ao texto que li em seu blog, à sua qualidade de revisora, agora arrependida.
Quanto à queda na qualidade de ghost-writer... que mal fez você a Deus? Isso não é trabalho em caves: é trabalho em canos de esgoto!
Mas foi por pouco tempo, diz você.
Conquistou um lugar ao sol?
Está respirando ar puro agora?
Atenciosamente,
Bernardo Sinval de Santantão

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Palavra

Dizer a última palavra sobre o assunto é
menosprezar a potencialidade do assunto.
 
***
 
A palavra e o ato vivem  em conflito,
e este geralmente vence.
 
***
 
As palavras fogem quando precisamos delas
e sobram quando não pretendemos usá-las.
 
***
 
O poeta lança a palavra que ninguém usará,
e orgulha-se disto.
 
Carlos Drummond de Andrade, em  O Avesso das Coisas


quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Manuel Tolentino de Almeida, A uma Velha presumida


SONETO XXVII.               
Debalde sobre a face encarquilhada
Pendendo louros bugres emprestados,
Dás inda ao louco amor teus vãos cuidados,
Em carmins enganosos confiada.

Postiça formosura, em vão comprada,
Não torna atraz os annos apressados:
Nem alvos dentes de marfim talhados,
Tornão em nova a tremula queixada.

De ti no mesmo tempo que do Gama
Cantou mil bens a Deosa Trombeteira,
A que os baixos Poetas chamão Fama:

Porém sempre ficaste em boa esteira;
Porque, se já não prestas para dama,
Inda serves mui bem como terceira.

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Karen Dalton


Didn't you know 
You can't make it without ever even trying

Hilda Hilst

I
 
 
Se te pareço noturna e imperfeita
Olha-me de novo
Porque esta noite
Olhei-me a mim, como se tu me olhasses...
E era como se a água
Desejasse
Escapar de sua casa que é o rio
E deslizando apenas, sem tocar a margem.
Te olhei. E há um tempo
Entendo que sou terra. Há tempo espero
Que teu corpo de água mais fraterno
Se estenda sobre o meu
Pastor e nauta.
Olha-me de novo. Com menos altivez.
E mais atento.
 
Em Dez chamamentos ao amigo


sábado, 18 de janeiro de 2014

Anjos




os anjos
são ressonâncias dos deuses mais antigos
do mais secreto de nossa demência
:
guardando os vivos
velando nossos mortos
ou devotados às mágoas
consolam os sofredores deste mundo
ou vestidos de saudade
e em legiões visitam nossos sonhos

ando hoje em dia
na doce companhia de anjos tristes


domingo, 5 de janeiro de 2014

Apostila

Ilha de Páscoa, CHILE

 

Aproveitar o tempo!
  Mas o que é o tempo, que eu o aproveite?
  Aproveitar o tempo! Nenhum dia sem linha...
  O trabalho honesto e superior...
O trabalho à Virgílio, à Milton...
  Mas é tão difícil ser honesto ou superior!
  É tão pouco provável ser Milton ou ser Virgílio!
  Aproveitar o tempo!
Tirar da alma os bocados precisos
 — nem mais nem menos —
Para com eles juntar os cubos ajustados
Que fazem gravuras certas na história
  (E estão certas também do lado de baixo que se não vê)...
  Pôr as sensações em castelo de cartas, pobre China dos serões,
  E os pensamentos em dominó, igual contra igual,
  E a vontade em carambola difícil.
Imagens de jogos ou de paciências ou de passatempos
 — Imagens da vida, imagens das vidas.
 Imagens da Vida. Verbalismo... Sim, verbalismo...
Aproveitar o tempo!
Não ter um minuto que o exame de consciência desconheça...
  Não ter um ato indefinido nem factício...
  Não ter um movimento desconforme com propósitos
Boas maneiras da alma...
  Elegância de persistir...
Aproveitar o tempo!
  Meu coração está cansado como mendigo verdadeiro.
  Meu cérebro está pronto como um fardo posto ao canto.
Meu canto (verbalismo!) está tal como está e é triste.
Aproveitar o tempo!
Desde que comecei a escrever passaram cinco minutos.
  Aproveitei-os ou não?
Se não sei se os aproveitei, que saberei de outros minutos?!
  (Passageira que viajaras tantas vezes no mesmo compartimento comigo
  No comboio suburbano,
  Chegaste a interessar-te por mim?
  Aproveitei o tempo olhando para ti?
  Qual foi o ritmo do nosso sossego no comboio andante?
  Qual foi o entendimento que não chegamos a ter?
  Qual foi a vida que houve nisto?
 Que foi isto a vida?) Aproveitar o tempo!
  Ah, deixem-me não aproveitar nada!
  Nem tempo, nem ser, nem memórias de tempo ou de ser!...
  Deixem-me ser uma folha de árvore, titilada por brisa,
A poeira de uma estrada involuntária e sozinha,
  O vinco deixado na estrada pelas rodas enquanto não vêm outras,
  O pião do garoto, que vai a parar,
  E oscila, no mesmo movimento que o da alma,
  E cai, como caem os deuses, no chão do Destino
 
Fernando Pessoa,  em  Poesias de Álvaro de Campos, 1944..

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

feliz ciclo novo

Se ela tivesse uma bola de cristal, talvez não tivesse feito previsões tão corretas sobre o que aconteceria a seguir, quanto as palavras que disse a ele naquela noite. Sim, ela sabia que todas as declarações e promessas eram, mais uma vez, palavras jogadas ao vento. Por mais diferentes que parecessem.
Mas eram dias que antecediam o ano novo. Dias que antecediam as promessas de renovação.... por que não? Por que não dar uma chance para o destino mal resolvido, para o acaso tão injusto, para o amor tão cego?
Por que algumas coisas, nunca mudam, pensou ela. Por mais que se deseje. Enquanto pensava isso, jogava pedrinhas pelo caminho. As pedras que queria deixar para trás...
Anos novos, mesmo que no imaginário podem, sim, trazer novas definições. E uma das decisões dela, era a de encerrar, definitivamente, esse ciclo. Se não podia deixar de amar, podia ao menos aceitar isso. E finalmente lidar com esse fato. Entender que nada, jamais mudaria, se ela não deixasse de ser conivente.
Então, ela agradeceu ao ano que começaria. E pensou que fazer diferente, só dependia dela. E que talvez, essa fosse a parte mais difícil.
...Ou a mais fácil.
Feliz 2014!