quarta-feira, 24 de março de 2010

A faca de prata.

Sempre que podia, ele carregava consigo essa faca que fora de seu pai a antes de seu avô. Não era uma faca cara, grande ou rara. Cabia no bolso interno do seu casaco de couro. Tampouco serviria como proteção em caso de assalto. Até a fina camada de prata já havia praticamente desaparecido. Mas ela esteve sempre presente nos bons momentos em família, nos churrascos com os amigos, nos galpões crioulos, e inclusive em alguns casamentos festejados à moda gaudéria. Mais importante do que isso, era uma herança de família, uma tradição de pai para filho. Dizia seu avô que ela pertencera a sua tataravó que com essa faca havia matado um homem que se escondera embaixo de sua cama. Isso deveria ser lenda, mas tornava a história daquela faca ainda mais interessante. Enquanto caminhava em direção ao Parque da Redenção lembrou que essa faca que passara por tantas mãos diferentes e havia tantas vezes descascado fumo, uma maçã ou cortado uma picanha, ainda era útil. Ontem mesmo, pescara um coração de galinha com a ponta. Às vezes era como se ainda sentisse o calor das mãos dos seus antepassados naquele pequeno instrumento de metal. Gostava de segurar no cabo por debaixo do casaco e sentir a presença deles. Entrou no parque, caminhou em direção ao pequeno chafariz situado dentro de um círculo de árvores e lá estava sua mulher com o pequeno Schnauzer a dar a volta da tardinha. Pensou que seria tão fácil matá-la. Um único golpe no estômago seria suficiente. Não havia ninguém ao redor, uma única testemunha. Poderia simular um assalto sem qualquer dificuldade. Retiraria da bolsa sua carteira, e deixaria o resto jogado no chão. Chegou perto dela que lhe sorriu amistosa sem jamais imaginar o que lhe passava na cabeça. Ela abriu os abraços e ele a abraçou. Sentiu seu corpo delicado e longilíneo como se fosse a última vez. Puxou-a com força e a beijou com paixão. Por que matá-la? Ele a amava tanto. De repente, ele sentiu algo queimar-lhe a barriga. Ela tão frágil chorava e sorria.



Baseado em um conto de Philippe Delerm e em algumas lendas gaudérias.


Oscar Kokoschka - Veronicas's Veil

4 comentários:

  1. Que coincidência! Dois contos sobre o mesmo tema construídos de maneiras completamente distinta, o seu e o do Maia. E os dois tementes à mulher e não a Deus.

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  2. Devemos temer quem realmente existe e manda.

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  3. Amor e morte, com diria um rockeiro portoalegrense. Amor e morte.

    Amor E Morte

    Composição: Julio Reny

    Você me fala dessas coisas de amor e luar
    Você não tem muita chance
    Você que manda flores
    E diz que o seu negócio é romance

    Você tem olhos perfeitos
    Garra bonita, coxas iguais
    Você tem quase tudo
    Para ser considerado um belo rapaz

    Mas no seu beijo falta corte
    Mas no seu beijo falta corte
    Dispense a lua baby e me dê
    E me dê amor e morte

    Amor e morte
    Amor e morte
    Amor e morte

    Você diz que o amor
    Só pode rolar a toda velocidade
    E que uma gata tem que andar muito ligada
    Por esse pique de cidade

    Você às vezes parece James Dean
    E realmente a gente
    Sente vontade de roçar
    Nesse blue jeans

    Mas no seu beijo falta corte
    Mas no seu beijo falta corte
    Venha com tudo baby
    E me dê amor e morte

    Amor e morte
    Amor e morte
    Amor e morte

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  4. Acho essas mortes por armas brancas as mais trágicas.

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