quarta-feira, 24 de março de 2010

Carta para o Miguel


Sabes, Miguel, não gosto de António Gedeão como gosto de Herberto Helder. Claro que não!Como te disse, descobri António Gedeão com nove, dez anos, era ainda uma criança.
Foi na biblioteca. Descobri-o num livro. Num poema. Numa lágrima de preta.
E foram muitas descobertas numa.
Já tinha lido outros poemas. Nos livros lá de casa. No meu livro de português.
O meu livro de português tinha poemas que, ainda hoje, sei de cor e salteado, como nunca soube a tabuada.Tinha um poema pequenino, cinco linhas, talvez. E nessa altura - já te disse isto - eu achava que poemas eram poucas palavras a dizerem muitas, muitas coisas.
Nesse tempo, eu achava também que poemas eram escritos que adivinhavam coisas nossas. Talvez porque aquele poema - o do meu livro de português - tinha uma coisa que eu também tinha. E só eu sabia disso. E, então, pensei que poemas e segredos eram a mesma coisa.
Mas nunca um poema, por aquela idade, me soube tanto a palavras para dizer, como aquele, do António Gedeão. Dei conta que as palavras faziam música.
Nunca um poema fora, para mim, palavras para ler em voz alta.
Depois de ler lágrima de preta, achei que um poema devia ser sempre sentido em voz alta. E achei mais: achei que um poema era uma coisa útil. Tal e qual um objecto útil que nos facilita a vida. Foi, assim, com lágrima de preta. Descobri António Gedeão e foi com António Gedeão que descobri o que era um pseudónimo. E achei aquilo divertido. E descobri que, afinal, todos temos pseudónimos dentro de nós. Que revelamos ou não. E, essencialmente, achei que ele fez bem, porque acho Rómulo um nome feio. Foram muitas as descobertas. Tinha talvez dez anos.
Eu não gosto de Herberto Helder como gosto de António Gedeão.
Descobri Herberto Helder numa livraria. Num livro. Num poema.
Num não sei como dizer-te que a minha voz te procura.
E foram muitas descobertas numa.
Já antes tinha lido poemas. Nos livros, em minha casa. Nos livros das livrarias.
No meu livro de quinhentas e setenta e uma página de poemas, há um poema que me faz emudecer.Por isso, eu nunca o vou poder ler em voz alta. Só sentir.
É um poema que acontece, que teima em acontecer até ao milagre.
Daqueles poemas que mantêm segredos. Secretos, seguros. Poemas com guelras. Poemas que adivinhavam coisas nossas. Poemas raros de carne e rosa.
Poemas de muitas palavras, a fazer sentir coisas únicas.
Mas eu regresso sempre ao não sei como dizer-te que a minha voz te procura.
Foi com Herberto Helder que descobri a poesia toda. E achei aquilo tudo. Terno. Eterno. Violento e voraz. Mas nunca um poema, por aquela idade, me soube tanto a suor. Dei conta que as palavras faziam amor.
Depois de ler não sei como dizer-te que a minha voz te procura, eu achei que quem não o lesse, seria certamente infeliz. Mas, depois, dei conta que isso de ser feliz ou infeliz é patético,quando o assunto é aquele poema. E outros.
Foram muitas as descobertas. Tinha talvez vinte anos.

3 comentários:

  1. Eu também pensava que poemas e segredos eram a mesma coisa.... E não são?

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  2. Marta, simplesmente Marta, belíssimo e terno o seu texto.

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  3. são Carlos, claro que sim :)

    obrigada, Bípede. fico feliz por teres gostado.

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