quinta-feira, 4 de março de 2010

Sim, quero dizer sim ao inacabado


Sim, quero dizer sim ao inacabado
que é o princípio de tudo
e o que não é ainda,
sim ao vazio coração que ignora
e que no silêncio preserva o sim do início,
sim a algumas palavras que são nuvens
brancas e deslizam amplas
sobre um mundo pacífico,
sim aos instrumentos simples
da cozinha,
sim à liberdade do fogo
que adensa o vigor da consciência,
sim à transparência que não exalta
mas decanta o vinho da pesença,
sim à paixão que é um ajuste ao cimo
de uma profunda arquitectura íntima,
sim à pupila já madura
que se inebria das sombras das figuras,
sim à solidão quando ela é branca
e desenha a matéria cristalina,
sim às folhas que oscilam e brilham
ao subtil sopro de uma brisa,
sim ao espaço da casa, à sua música
entre o sono e a lucidez, que apazigua,
sim aos exercícios pacientes
em que a claridade pousa no vagar que a pensa,
sim à ternura no centro da clareira
tremendo como uma lâmpada sem sombra,
sim a ti, tempestade que iluminas
um país de ausência,
sim a ti, quase monótona, quase nula
mas que és como o vento insubornável,
sim a ti, que és nada e atravessas tudo
e és o sangue secreto do poema.

António Ramos Rosa
[de No Calcanhar do Vento, 1987] in Os Quatro Elementos, pag. 39, ASA, 2004

imagem: pintura de Magritte

4 comentários:

  1. Marta, linda poesia de um autor que não conhecia. Dizem que a poesia está em baixa. Outro dia fui a uma livraria aqui no extremo sul do país tropical e perguntei sobre um livro de poesia do Drummond. Ele me disse que a estante das poesias diminui a cada ano. Talvez o mundo de hoje esteja como está exatamente por isso, os poetas estão em extinção. Salvem os poetas.

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  2. Muito bem escolhido. Sabe bem ler ao fim de um dia de trabalho.
    Sabe bem sentir que muitos amam a poesia porque esse sentimento é "O sangue secreto do poema"

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  3. A poesia é também o sangue secreto da prosa.

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  4. [a suprema palavra está em qualquer lugar da composição; baralham-se os versos e arrumam-se em diferentes disposições, e o sangue do poema continua a verter... de Ramos Rosa brota a palavra suspensa, suprema, nunca definitiva: o poema! - e um poema nunca é demais!]

    um imenso abraço, Marta

    Leonardo B.

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