Sim, quero dizer sim ao inacabado
que é o princípio de tudo
e o que não é ainda,
sim ao vazio coração que ignora
e que no silêncio preserva o sim do início,
sim a algumas palavras que são nuvens
brancas e deslizam amplas
sobre um mundo pacífico,
sim aos instrumentos simples
da cozinha,
sim à liberdade do fogo
que adensa o vigor da consciência,
sim à transparência que não exalta
mas decanta o vinho da pesença,
sim à paixão que é um ajuste ao cimo
de uma profunda arquitectura íntima,
sim à pupila já madura
que se inebria das sombras das figuras,
sim à solidão quando ela é branca
e desenha a matéria cristalina,
sim às folhas que oscilam e brilham
ao subtil sopro de uma brisa,
sim ao espaço da casa, à sua música
entre o sono e a lucidez, que apazigua,
sim aos exercícios pacientes
em que a claridade pousa no vagar que a pensa,
sim à ternura no centro da clareira
tremendo como uma lâmpada sem sombra,
sim a ti, tempestade que iluminas
um país de ausência,
sim a ti, quase monótona, quase nula
mas que és como o vento insubornável,
sim a ti, que és nada e atravessas tudo
e és o sangue secreto do poema.
António Ramos Rosa
[de No Calcanhar do Vento, 1987] in Os Quatro Elementos, pag. 39, ASA, 2004
que é o princípio de tudo
e o que não é ainda,
sim ao vazio coração que ignora
e que no silêncio preserva o sim do início,
sim a algumas palavras que são nuvens
brancas e deslizam amplas
sobre um mundo pacífico,
sim aos instrumentos simples
da cozinha,
sim à liberdade do fogo
que adensa o vigor da consciência,
sim à transparência que não exalta
mas decanta o vinho da pesença,
sim à paixão que é um ajuste ao cimo
de uma profunda arquitectura íntima,
sim à pupila já madura
que se inebria das sombras das figuras,
sim à solidão quando ela é branca
e desenha a matéria cristalina,
sim às folhas que oscilam e brilham
ao subtil sopro de uma brisa,
sim ao espaço da casa, à sua música
entre o sono e a lucidez, que apazigua,
sim aos exercícios pacientes
em que a claridade pousa no vagar que a pensa,
sim à ternura no centro da clareira
tremendo como uma lâmpada sem sombra,
sim a ti, tempestade que iluminas
um país de ausência,
sim a ti, quase monótona, quase nula
mas que és como o vento insubornável,
sim a ti, que és nada e atravessas tudo
e és o sangue secreto do poema.
António Ramos Rosa
[de No Calcanhar do Vento, 1987] in Os Quatro Elementos, pag. 39, ASA, 2004
imagem: pintura de Magritte
Marta, linda poesia de um autor que não conhecia. Dizem que a poesia está em baixa. Outro dia fui a uma livraria aqui no extremo sul do país tropical e perguntei sobre um livro de poesia do Drummond. Ele me disse que a estante das poesias diminui a cada ano. Talvez o mundo de hoje esteja como está exatamente por isso, os poetas estão em extinção. Salvem os poetas.
ResponderExcluirMuito bem escolhido. Sabe bem ler ao fim de um dia de trabalho.
ResponderExcluirSabe bem sentir que muitos amam a poesia porque esse sentimento é "O sangue secreto do poema"
A poesia é também o sangue secreto da prosa.
ResponderExcluir[a suprema palavra está em qualquer lugar da composição; baralham-se os versos e arrumam-se em diferentes disposições, e o sangue do poema continua a verter... de Ramos Rosa brota a palavra suspensa, suprema, nunca definitiva: o poema! - e um poema nunca é demais!]
ResponderExcluirum imenso abraço, Marta
Leonardo B.