Naquela tarde as filhas do presidente apareceram, como habitualmente, para tomar “o chá”.
“O chá” fazia parte do ritual de sociabilização que o General lhe impunha desde criança.
A convivência com meninas de boas famílias, que se sentiam privilegiadas por entrar na mansão, era um padecimento a que não podia fugir.
As conversas com as manas Gomes, duas burguesinhas irritantes, por quem nunca conseguiu nutrir nada mais que um desprezo mal disfarçado, eram, desde há muitos anos, o sacrifício das tardes de quinta-feira.
Sentada na cabeceira da mesa, mirava as chávenas de porcelana e o bule de prata, com os reflexos distorcidos das Gomes.
As raparigas palravam sem parar, duas gralhas cansativas ao despique, sobre as últimas modas de Paris (o sonho das manas Gomes era o casamento com um oficial do exército e lua de mel em Paris) enquanto ela viajava dentro de si.
O corpo quente e doce do amante naquela manhã. Sentia-lhe o cheiro e o sabor gravado na memória.
A porta que zombava de si com todos os seus mistérios. As sombras sobre o seu passado. O Jerónimo, com o seu olhar de lince, sempre à espera de a apanhar em falso.
O Jerónimo… o mesmo que lhe fez aquilo… Tinha treze anos. Numa tarde de rebeldia, depois de uma discussão com o General, avançou resoluta até à porta, com um cutelo roubado da cozinha, disposta a derrubá-la.
Ingénua. Menina inocente, ainda.
Foram precisas quatro criadas para a segurar na cadeira e foi ele, o Jerónimo, que lhe cortou o cabelo com tesouradas impiedosas, entre os gritos e a luta para se soltar. Depois, não contente com o castigo mandou buscar a navalha da barba e rapou-lhe a cabeça.
“Se te mexeres corto-te mas não vou parar.”, disse ele.
Ficou imóvel, com as lágrimas grossas de indignação e raiva a saltarem dos olhos como uma catarata de sal e dor. As criadas especadas e mudas a assistirem àquilo e ninguém, ninguém para a defender. Tinha treze anos. Quem é que faz uma coisa daquelas a uma criança?
– Não lhe parece que o chapéu da mana é absolutamente adorável?
A pergunta trouxe-a repentinamente à realidade.
– Absolutamente…
Levantou-se, puxou a toalha de linho com brusquidão, o lanche voou pela sala e ela saiu com passos lentos a arrastar o vestido pelo chão encerado.
As Gomes ficaram mudas de terror, cobertas de chá e bolos, com o adorável chapéu da mana inutilizado pelo bule de prata.
(continua)
bela fatia, apple :)
ResponderExcluirApple, você está se saindo, como dizem por aqui, melhor que a encomenda. Quando vem a próxima parte?
ResponderExcluirTem uma coisa que estou a horas querendo perguntar e sempre me esqueço: qual é o título?
ResponderExcluirMeninas, obrigada!
ResponderExcluirOs vossos comentários incitam-me a continuar. Confesso que estou a gostar desta história que está a nascer em mim e que já me acompanha. Escrevo directo aqui,sem ter nada preparado de antemão. As ideias têm-se multiplicado e as personagens começam a ganhar contornos na minha mente, mas apenas lá.
Talvez seja por isso que ainda não tenho titulo, vamos ver por onde estas "gentes" nos levam.
Querida Bípede, espero ter respondido à tua pergunta ;)