terça-feira, 9 de março de 2010

Tres bolinhas

Três bolinhas de gude de cada vez. Para fortalecer os movimentos do punho. Na medida obtida pela fisioterapeuta, o ângulo não estava normal. Ainda era preciso treinar a capacidade de pegar pesos. Tocar um pianinho imaginário junto com outros pacientes não parecia um exercício útil. Era uma atividade ridícula. Divertia a especialista em reabilitações mínimas e necessárias. Seu Orlando não era capaz de fechar uma das mãos. O rolo compressor, no qual ele colocava as massas, quase destruiu sua mão por inteiro. No meio do azar, ele teve sorte e tropeçou. Caiu por cima da máquina e o fio da tomada. Deu pra retirar pedaços de mão para o implante. A mão mais hábil. Tempos difíceis em seis meses de dependência. No início, a mulher esteve tolerante. Depois, agia com o maxilar travado e sorriso amarelo. Prazos sem cumprir, acúmulos na agenda. Raiva contida e a dieta adiada mais uma vez. Não conseguia olhar para ele enquanto o esfregava, expedita, rápida. Com desprezo acumulado por outros acontecimentos, olhava de perto carnes gordas e mal reprimia o asco. Desprezava seu pênis pequeno e apagado entre pelos emaranhados. A higiene agora dependia dela. Responsabilidade incômoda. Vislumbrava o ânus e não podia conter a irritação. Associações muito nojentas surgiam e com espantosa velocidade afetavam seu estômago. No caminho da clínica, sugeriu um enfermeiro. Contornou os motivos e inventou compromissos. Ele teve que fingir que não percebia. Saiu do carro e quando entrou na sala toda branca ouviu as falas alegres de Soraia, cujo punho estava quase chegando ao ângulo ideal e a cor dos cabelos avermelhara. Teve vontade de se esconder, mas ela anunciava um sorriso que o fez sentar. Metodicamente, sem nenhuma crença, começou a apertar, com a força que ainda restava, três bolinhas de cada vez.

2 comentários:

  1. O que temos aqui? Um conto estruturado, com passado, presente e uma intuição de futuro. Tudo nestas linhas, aonde flui o caráter humano dos personagens, no qual transparece a psicologia em um bem elaborado resumo trágico. Quase um libreto de ópera. Parabéns!

    ResponderExcluir
  2. Adorei! Tudo a ver com a carta citada acima. Algo realmente maravilhoso !

    Parabéns.

    ResponderExcluir