Quando era pequenino, lembro-me bem, a minha professora chamava-se Carminda. Era da Póvoa de Varzim e falava-nos muitas vezes da linguagem inventada pelos pescadores e do vento poveiro. Achava a temática fascinante e arvorava a teoria de que o linguajar piscatório merecia tantos ou mais estudos do que o mirandês, língua perdida, mas reconhecida como língua oficial em Portugal.
Isso agora não interessa. Ela contava que vivia perto do cemitério, mesmo ali à beira dos mortos, do cheiro das flores das senhoras que fazem o favor de manter esse negócio, do barulho do portão de ferro que rangia, gemia e chorava sempre que entrava mais um carro funerário. A morte era um ritual normal na vida da minha professora. Do que ela mais gostava era de observar o cemitério à noite. Tinha um fascínio enorme por aquilo e fazia apostas.
Há quem olhe para o céu à espera de uma estrela cadente, ardentemente à espera de pedir um desejo, condensar naquele rasgo luminoso, em queda livre, todas as esperanças de uma vida. Carminda preferia olhar para o cemitério e perceber onde estavam os mortos novos
pelos gases que passeavam no ar, como uma última manifestação dos corpos que partiam.
A mãe dizia-lhe que tinha demasiada imaginação.
Carminda jurava o conto do coveiro como verdadeiro:os gases eram como as almas a ir para o céu, devagar, a libertarem-se dos cadáveres e ela gostava de os ver, a desfazerem-se no negro da noite, contra a parca iluminação dos candeeiros velhos, de ferro antigo e ruidoso, que compunham o cenário do cemitério.
Eu gosto de pensar que morreu ali, na Póvoa, a olhar as almas gaseadas enquanto atormentava uma prol de netos que reviravam os olhos de cansaço por ser sempre a mesma história.
Patrícia Reis in ANTES DE SER FELIZ, Dom Quixote
Isso agora não interessa. Ela contava que vivia perto do cemitério, mesmo ali à beira dos mortos, do cheiro das flores das senhoras que fazem o favor de manter esse negócio, do barulho do portão de ferro que rangia, gemia e chorava sempre que entrava mais um carro funerário. A morte era um ritual normal na vida da minha professora. Do que ela mais gostava era de observar o cemitério à noite. Tinha um fascínio enorme por aquilo e fazia apostas.
Há quem olhe para o céu à espera de uma estrela cadente, ardentemente à espera de pedir um desejo, condensar naquele rasgo luminoso, em queda livre, todas as esperanças de uma vida. Carminda preferia olhar para o cemitério e perceber onde estavam os mortos novos
pelos gases que passeavam no ar, como uma última manifestação dos corpos que partiam.
A mãe dizia-lhe que tinha demasiada imaginação.
Carminda jurava o conto do coveiro como verdadeiro:os gases eram como as almas a ir para o céu, devagar, a libertarem-se dos cadáveres e ela gostava de os ver, a desfazerem-se no negro da noite, contra a parca iluminação dos candeeiros velhos, de ferro antigo e ruidoso, que compunham o cenário do cemitério.
Eu gosto de pensar que morreu ali, na Póvoa, a olhar as almas gaseadas enquanto atormentava uma prol de netos que reviravam os olhos de cansaço por ser sempre a mesma história.
Patrícia Reis in ANTES DE SER FELIZ, Dom Quixote
Ora essa. Para mim essa coisa de fogo fátuo era mais uma lenda urbana, antes mesmo de eu saber da existências das lendas urbanas. Também, por coincidência, memórias de ginásio...
ResponderExcluirGostei da escrita, vou conhecer mais de perto.
Meu Deus, adoro este Blog!
Se existe algo que eu gosto de Portugal são os nomes dos sítios e das cidades. Póvoa do Varzim é simplesmente o máximo, assim como Albufeira, Angra do Heroísmo, Gafanha da Nazaré, Macedo de Cavalheiros, Olhão da Restauração, Oliveira de Azeméis, Oliveira do Hospital, Oliveira do Bairro, Peso da Régua, Reguengos de Monsaraz etc.
ResponderExcluirMarta, tinha perdido este post. São tantos que alguns escapam. Adorei o trecho. Vou conferir a escritora!
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