segunda-feira, 22 de março de 2010

A Ingrata

- Sempre fui boa. Não entendo por quê o mundo é tão cruel comigo. Fui boa filha, boa esposa, boa mãe, e as pessoas foram tão más, tão ingratas. Me apelidaram até de chatinha. Meus filhos homens só pensam nos próprios umbigos. Casaram-se com aquelas moças esnobes que sempre torceram o nariz para mim. Não tenha filhos homens, eles não cuidam da gente. Minhas filhas também não serviram para nada. A Diana não foi nem ao enterro do pai. Desde jovem era uma Messalina no cio. Foi amaldiçoada com o dom da beleza. Espíritos obssessores passaram a rodeá-la ainda menina. Quando chegou a mocidade foi tomada pela pomba gira. Homem algum conseguia resistir aos seus encantos. Até a minha Santinha, a quem dediquei todo o meu amor, me abandonou. De uma hora para outra deu para gostar de homem e se casou com aquilo que você viu agora há pouco, me deixando sozinha. Graças ao bom Deus casei com o meu marido. Não vi homem mais ruim. Depois de velho, me abandonou. Como eu sou muito boa, mesmo assim fui visitá-lo no leito de morte. Me olhou assustado e, com um último esforço, já que não podia falar, me ergueu o dedo. Até hoje não sei por quê ele foi embora. Por um somenos saiu de casa. Mesmo assim, isso foi bom. Paguei todos os meus pecados, resgatei todas as minhas dívidas e na próxima vida vou renascer em um planeta mais evoluído, rodeada de espíritos de luz. Deus que me perdoe por dizer essas palavras, mas meu fim está perto e preciso desabafar. Sabe, na minha religião não nos confessamos, e sinto uma vontade de falar.

- Acho que não estou adequadamente vestida. Ao vê-la tão elegante em seu vestido de gala e rodeada por margaridas, acho que minha jaqueta tigrada não está muito bem. Como ela fica serena assim dormindo. Parece tão doce. Pena que já esteja amarelada. É melhor fechar o caixão antes que comece a feder. Você me leva em casa rapidamente para trocar de roupa? Ah, agora sim. Ficou muito melhor. Essa jaqueta é chiquérrima. Toda em “patchwork” da mais pura seda. Ganhei de um alemão lindo na Europa. Que homem. Ainda bem que a Santinha ainda não chegou. Não queria que ela me visse mal vestida. Ela sempre teve uma inveja doentia de mim. A coitada sempre foi feia, e por isso a preferida da mamãe. Eram a imagem e semelhança uma da outra. Mulher feia é um perigo. Dizem que casou virgem aos 40 anos. Bem feito. Eu, eu sempre fui linda. Casei com um homem que me cobriu de jóias e vestidos. Me deu até um Porsche. Mesmo depois de separados continuamos amigos. No último Natal, me presenteou com um cruzeiro pelo Caribe. Ela e a mamãe nunca agüentaram a minha beleza, o meu sucesso. Sempre foram feias e invejosas. Minha beleza tem sido um fardo na minha vida. Todas as mulheres me odeiam. Em compensação, os homens me adoram. Há alguns anos comecei a contar e já eram mais de 200. Depois, parei de contar.

- Você viu a Diana? Até que ela está bem. Continua bonita, o tempo não passa para ela. Impressionante. Agora está ruiva. Da última vez que a vi não a reconheci. Quando aquela loira entrou na festa e veio em minha direção cheguei a soltar um uau. Somente quando ela falou comigo é que eu vi que era nossa querida maninha. Está falando com a tua filha já faz tempo. Não acho uma boa influência para a menina. Se eu fosse você iria até lá e dava um jeito de afastá-las. Não foi uma boa filha. A mamãe se referia a ela como a “Ingrata” e a Santinha a detesta.

- Minha filha, há tantos anos que não lhe vejo. Acho que a última vez foi no velório da mamãe. Seu pai não me dá mínima e nunca fui próxima das minhas cunhadas. Mas você é tão linda, se parece tanto comigo. Eu também era assim. Mas não fique triste. Isso tudo passa. Ninguém merece nosso sofrimento. O que o teu pai fez é normal. Ele sempre foi um estúpido. Eu sim sofri. Muito mais do que você e estou aqui bem forte. Quando era mocinha meu pai começou a me tocar. A primeira vez foi durante o jantar. Senti sua mão sob a saia escolar subindo em direção da calcinha. Fiquei tão nervosa que não soube o que fazer. Congelei. Depois, começou a avançar cada vez mais. Eu tinha que fugir dele o tempo todo. Comecei então a me esconder em um quartinho que havia embaixo da escada. Meu tormento foi imenso. A mamãe descobriu e ficou uma fera. Achei que iria dar morte. Disse que eu era uma filha ingrata, que estava tomada pela pomba gira, e passou a me bater também. Quando eu tinha 17 anos casei e nunca mais voltei para casa. Não fui nem no enterro do maldito. Não sei por quê estou te contando tudo isso. Sabe, na minha religião a gente não se confessa, e sinto uma necessidade de desabafar.



Pierre Puvis de Chavannes - Mary Magdalene

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