terça-feira, 9 de março de 2010

Foi assim que comecei a amar Sophia

O meu amor mais antigo é a poesia. A seguir à minha mãe. Sendo que mãe e poesia são, tantas vezes sinónimo, no meu dicionário de afectos. Tenho a sensação de sentir poemas muito cedo. Mesmo antes de começar a ler. Uma vez, no início da infância, senti muito medo e a minha mãe abraçou-me com muita força. Foi um abraço extraordinário. E eu, dentro do abraço dela, tive uma sensação de poema, que ainda hoje se mantêm. Depois, na escola, os meus livros de leitura tinham poemas que decorei. E só aí percebi que os poemas também se fazem com letras. E recordo-me, por exemplo, que astronauta rima com pernalta. E flor com dor. E contou com enrolou. E lembro-me, de como a febre das rimas tomou conta do meu universo de palavras. Não havendo nenhum remédio para a baixar. Tal como não havia nenhuma palavra que eu não fizesse rimar com outra. Até à exaustão. Da minha mãe. Que dizia: deixa lá!Procuramos amanhã. Recordo-me de pôr o Meio Físico e Social, a rimar com jornal. E ainda sinto a tristeza de não ter sido eu a arranjar uma rima para a Matemática. Andava na primária.

Depois, foram as histórias mais compridas. Não rimavam. Mas a sensação de poema ficava cá dentro. Quando gostava muito delas. Até que, um dia, chegou a Menina do Mar. E eu percebi que os poemas e as estórias eram feitas por pessoas que conheciam outras pessoas, coisas e lugares que um dia, eu também queria conhecer. E pensei na sorte de Sophia. Por conhecer uma menina “de cabelos verdes, olhos roxos, com um vestido de algas encarnadas”. E um Rapaz de Bronze e uma Fada Oriana e um Cavaleiro da Dinamarca. E, depois, por Sophia, descobri que as estórias podiam ter poemas dentro. [Como os filhos, dentro dos abraços dos pais]. Como na estória A árvore, que tanto gostei de ler. E percebi, com clareza, que uma árvore pode transformar-se numa barca. E que, deste modo, uma árvore pode viver no mar. E descobri como um mastro se pode transformar numa guitarra e como essa guitarra pode ter voz. E como essa voz pode ser uma canção e como uma canção pode ser um poema. E como um poema pode ser a memória de uma árvore ou de um povo.

Ensinou-me o espanto. Foi assim que comecei a amar Sophia. Desde muito cedo. Ela cresceu em todos os meus sentidos. Em todo o meu sentir. E percebi, com ela, que não podia viver sem livros. Porque os livros dela me tinham ensinado a olhar para além do aparente. E foi, assim, que a fui procurar às livrarias. Pelo nome. E foi dela, o primeiro livro que eu comprei. Histórias da Terra e do Mar. E, depois, todos os outros que me chegaram. Até toda a sua poesia me entrar, letra a letra, nas veias. E circular como seiva. Até perceber a raiz do “inteiro” e do “original”. Até compreender todas as ilhas que habitam o mundo. Até me apaixonar pela Grécia. Até o mundo, não respirar sem ela. Sem a sua poesia.

E depois, ia-lhe escrevendo cartas. Até que um dia, em Viana do Castelo, durante uma Presidência Aberta, dei conta de nós, no mesmo lugar. Do lado de fora dos poemas. Peguei nas minhas cartas e nos seus livros. Na convicção mais funda do nosso encontro. E nas palavras iniciais que lhe queria dizer. Quando cheguei à Pousada de Santa Luzia, não havia santa que valesse a tanta ansiedade. Não sabia onde por as mãos e, muito menos, o coração. Não sabia nada. O seus poemas todos cá dentro. Como se fossem um só. As palavras apertadas na garganta. Os lábios colados. Quase não respirava. E acho que, mesmo assim, rezei. Para aquela gente ir toda embora. Mas não aconteceu. Até que ela se levantou e eu paralisei. Mas consegui ouvir e ver. E vi-a tão extraordinariamente bela. Tão extraordinariamente sábia. Tão extraordinariamente serena. Que não consegui fazer nada. Nem tão pouco aproximar-me. Admirei-a de longe. Como tinha de ser. Numa afasia total. Numa epifania absoluta. Dentro dos livros. No nosso lugar. Até ao dia da sua morte. Doze anos, depois, daquele dia, em que a vi. Sem a imaginar. Nessa noite de Julho, li-lhe as minhas cartas. Em voz alta. Só lá estava eu. E ela.

«Seu rosto seria a cintilante claridade
De uma praia
E em sua humana carne brilharia
A luz sem mancha do primeiro dia»
Sophia de Mello Breyner Andresen


[este texto foi originalmente publicado aqui. ao contrário de tantos outros, é real.
HOJE dedico-o à Gerana Damulakis. fiquei sabendo da sua admiração por Sophia...]

7 comentários:

  1. Belo texto, Marta. Constato que, quando há uns tempos te enviei um poema de Sophia para o primeiro aniversário do "Há Vida em Marta", escolhi bem.

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  2. eu não diria bem, Carlos. diria absolutamente no alvo. ou no coração. como queiras.
    disse-me tanto, que não te sei explicar.
    pelo menos agora.

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  3. Quando através da escrita as emoções transparecem e nos envolvem...é para continuar Marta para continuar a escever, lindo.
    Também adoro a Sophia.
    (Bonito gesto para a Gerana)

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  4. Um dia, num sábado de noite (era dia das bruxas), resolvi me perder por Lisboa. Sai do hotel depois de tomar um vinho e de walkman ouvindo madredeus percorri suas ruas até alcançar o meu bairro favorito, o Alfama. E lá de cima encontrei um lugar mágico, o miradouro Sophia de Mello Breydner Andresen.

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  5. Que coisa mais linda, Marta.
    Não conheço Sophia, mas seguramente vou procurar.
    O que escrevesses, no entanto, é belíssimo e deixaria qualquer Sophia orgulhosa. Qualquer mãe feliz.
    Para mim, matemática sempre rimou com gramática, enigmática e lunática.
    Tudo o que sou e adoro.

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  6. Que texto, Marta! Na verdade, uma página de sua memória, uma página linda, a percepção da poesia no abraço materno, nas rimas da língua, nas páginas de Sophia, e em você. Agradeço emocionada seu testemunho de que a poesia existe dentro e fora de nós e fascina e encanta. Imagine se Sophia pudesse ter lido seu texto. Bjo.

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  7. [ora aqui está: dois dinossauros, pela mão de uma! :)]

    um imenso abraço, Marta

    Leonardo B.

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