Ela era um enfermeira e tanto. Pequena, branquíssima, com os cabelos bem curtos e escuros. Seus olhos desproporcionalmente grandes, com cílios extremamente separados, faziam com que ela parecesse uma rechonchuda boneca de porcelana, cujo irmão malvado de uma pobre menina tivesse cortado o cabelo. Era uma criatura bizarra, lembrava a paranormal de Poltergeist. A voz sussurrada e ao mesmo tempo aguda, com um sotaque fortíssimo do sul do Brasil, era algo que agradava, dava vontade de rir. No primeiro momento que ele a viu sua reação inicial foi de empatia por aquele ser tão peculiar. Os estranhos sem identificam. Ela também gostou dele imediatamente. Diria até que ela se apaixonou na hora. Lhe falou que ele era igual ao pai, mas ainda mais bonito. Ele percebeu e achou graça. Também havia nessa reunião um outro ser muito especial. Uma mulher com grande cultura e personalidade marcante que surpreendia quando menos se esperava. Parecia uma chinesa, com uma pele branquíssima que disfarçava a idade já avançada. Era uma pessoa generosa, capaz de perdoar o desamor e o desprezo de alguém para quem a vida toda havia sido tão boa, e que faria qualquer coisa para diminuir o sofrimento do irmão. Sobre a cama, jazia o elo de ligação dessas pessoas, mantido vivo através de tubos e sondas que lhe atravessavam o corpo inteiro. Suas palavras eram difíceis de compreender, embora fosse óbvio para todos que ele estava consciente e que sabia como médico que era uma questão de tempo. Com muito esforço, o morto vivo tentava retirar a sonda que entrava pelo nariz e descia goela abaixo lhe impedindo de falar. O filho ateu pensava sobre a maldade e hipocrisia dos médicos e dos familiares, que em nome de um prolongamento inútil da vida o impediam de ter uma morte digna, de ter algum controle sobre seus últimos momentos. Pensava ele que até aos animais é dado um destino melhor. Mas quem sabe ele estivesse errado, Deus existisse e o seu pai merecesse aquilo tudo para chegar ao céu livre de qualquer pecado. Estivesse finalmente resgatando as suas dívidas. Lembrou que tantas vezes o pai dissera que os filhos eram dívidas de outra encarnação. Vai ver nessa última vida o pai também não tivesse agradado a Deus o suficiente. Tivesse ainda mais dívidas para resgatar. Mas doía ver que nem se despedir o pobre diabo podia. E sem dúvida havia muitas coisas que o velho precisava dizer. Ele havia falhado com os seus e ele sabia disso. Seu olhar também mostrava o pavor, o medo da morte, a negação de uma fé exacerbada que muitas vezes fora usada para torturar seus entes mais queridos e justificar as atitudes mais preconceituosas e injustas. Merecia o titulo de Santo de Pés de Barro, conferido por aquela que fora sua maior vitima e que muitos anos antes desistira de viver. Penalizado pela situação do pai, ele queria muito arrancar a sonda e deixar que ele morresse em paz. Mas não tinha coragem para tanto. Fora criticado por todos e pelo irmão quando disse que achava um absurdo aquela sonda torturadora. Parecia que até que ele havia sugerido um assassinato, quando apenas queria aliviar o sofrimento do moribundo. Seria na verdade um ato de amor. Não havia nesse desejo qualquer ligação com o enredo dos Irmãos Karamazov, sua leitura para passar o tempo quando não estava ao lado do pai. Alguns amigos do moribundo foram chegando, se despedindo, dizendo coisas bonitas. O filho praticamente não os conhecia, pois nos últimos anos a segunda mulher do moribundo havia brigado com todos os seus parentes e amigos de longa data. Essa mulher de cabelos crespos que lembravam os da Medusa, de olhar fundo, nariz esborrachado e corpo de pirâmide invertida, quando percebeu que ele iria ser hospitalizado para não mais voltar, lhe disse adeus e arrumou as malas. Não é que ela não gostasse dele. Mas ela não gostava de hospitais. Não ligou sequer para saber como ele estava, o que aliás foi um alivio para a família. Tinha também que ir decorar o apartamento novo comprado na capital. Assim, contava ele naquele momento com dois filhos um tanto distantes, a irmã, e algumas pessoas pagas para aturá-lo, dentre elas a estranha enfermeira. Quando ele irritadíssimo grunia alguma coisa e tentava retirar a sonda para permitir que suas cordas vocais cumprissem com suas funções, a estranha enfermeira pegava na mão do moribundo, e dizia com uma voz mediúnica: “Ele falou que está muito contente com a presença de todos.”. Olhava para a irmã, que fora uma das primeiras vitimas da Medusa, e dizia que “ele estava pedindo desculpas, que hoje ele sabe que a Medusa não prestava”. Para o filho ela dizia, “ele disse que está muito feliz com a sua presença.”. O pai ao ouvir tais impropérios olhava para o filho desesperado. Não bastasse ele não poder exprimir seus pensamentos, ainda havia uma doida a pôr palavras na sua boca. A irmã encantada com o que ouvia, enaltecia o talento da enfermeira em compreender a linguagem dos quase mudos. Seus olhos de chinesa sorriam de satisfação. Sugeria inclusive que a enfermeira deveria escrever um manual ensinando as pessoas a interpretar a linguagem dos que não podem mais falar. O tempo foi passando e algumas pessoas desconhecidas chegaram. O filho incomodado de ter que deixar o pai no quarto com a enfermeira os atende na antissala do quarto e pede que não cansem o moribundo que está muito mal. Permite evidentemente que eles dêem um último adeus. Ninguém tem coragem de dizer, mas era claro que estavam lá para dar a última benção de acordo com a religião do pai. O filho imediatamente percebeu o constrangimento, e fingindo ser católico disse: “Na minha religião chamamos um padre para dar a extrema unção, na religião de vocês não há nada que se possa fazer para confortá-lo? Ele fará sua última viagem sem ajuda alguma?”. Isso era tudo o que eles queriam ouvir. Pediram que ele ficasse na antissala para que pudessem com privacidade dar o último passe ao doente. Dessa forma, a irmã também religiosa e um educadíssimo senhor entraram no quarto e começaram suas orações. Na antissala, a enfermeira olhou para o filho e com um tom ainda mais agudo lhe disse: “Aquela mulher é louca! Louca!”. "Quem?", perguntou o filho surpreso. “A mulher do doutor”, respondeu. “Ela não queria que eu desse sequer comida pra ele. Queria que ele morresse de fome. Também queria que eu trabalhasse dia e noite, sem parar. Eu disse que não podia, pois se de noite eu cuido dos doentes, de dia eu trabalho na funerária. Deixo eles lindos, fiz curso de maquiladora de defuntos. Também retiro os órgãos e preparo o corpo. Agora vou fazer um curso de reconstrução de rostos para tratar das pessoas que morrem de acidente. Se vocês ainda não tem funerária, recomendo a nossa.". O filho teve vontade de gargalhar, mas a ocasião não permitiu. Ela seguiu dizendo que havia cuidado de muitos pacientes tanto em vida quanto em morte. Ajudava-os de uma certa forma a atravessar todas as fases do perecimento. Falou também que era uma profissional super discreta. Que já havia visto as coisas mais impressionantes nesses momentos, mas que ela era um tumulo. Não comentava com ninguém seus segredos profissionais. Que a professora Maximilia, que lecionava no antigo grupo escolar (“sabe quem é, não sabe?”), somente pôde morrer após fazer as pazes com a nora que havia sido tantas vezes massacrada por ela. "É importante que seu pai faça as pazes com a mulher do seu irmão, não acha?". Distraído pela literária enfermeira, o filho até esqueceu a tristeza do momento, e pensou que ela seria ótima para um conto. Logo após os amigos do além terem se retirado, o filho convidou a tia para jantar. Em frente ao hospital, ele escuta um grito estridente da tia, que como já se disse surpreendia, seguido de uma declaração fantástica: “Ai! Eu arrasei... Não sobrou pra ninguém. Dei um passe de filme. Coitado do Luiz. O que ele disse não foi nada perto das minhas palavras. Eu estava inspirada. Quase tive um êxtase!” Isso foi demais para ele. Começou a gargalhar na porta do hospital para o espanto de todos que o conheciam. Jamais tinha visto tamanha loucura reunida em um único dia. Parecia um filme do Almodóvar. Na manhã seguinte, contrariando todos os prognósticos o velho melhorou. Pôde assim se despedir da filha que chegara de viagem e finalmente dizer algumas palavras que apesar da sonda puderam ser compreendidas. Dois dias após, ele subiu.
Tudo me soa tão bizarro e também tão familiar...
ResponderExcluirEletrizante relato, propio de uma situacão límite.Me pergunto: pode-se,hoje, morrer em paz?
ResponderExcluirboquiaberto...
ResponderExcluirTenho uma raiva do Fábio Jr. Metido a bom isso e bom aquilo e foi um péssimo pai para a filha quando separou-se da mãe dela.
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