quinta-feira, 1 de abril de 2010

a Páscoa pelos rituais


[Para a Cristina. Onde quer que esteja]

Naquele tempo, a Páscoa chegava-me pelos rituais. A casa era o primeiro. Saia tudo do lugar. Para ficar tudo no mesmo lugar. A Cristina começava, pelo menos, quinze dias antes. Abriam-se as janelas, demoradamente. O sol entrava, demoradamente, na sala de estar, voltada para o terraço. E as cortinas ondulavam serenas nos reposteiros altos. As pratas brilhavam mais. As toalhas brancas cheiravam mais a linho. E a louça Vista Alegre era, ainda, mais alegre. E os copos de cristal tilintavam mais. E a minha mãe chamava mais vezes pela Cristina. E ela corria pela casa toda. De uma ponta à outra. Uma azáfama. Até ficar tudo puro e sagrado como água benta. A dispensa, ao lado da cozinha, cheirava a pão-de-ló e a doces de ervas e açucar. E na sala de jantar, a mesa abria-se e o carrinho de chá ficava vazio, para pousar as travessas. A cozinha era, então, poucos dias antes, um reino de pequenos saberes. E sabores. No quintal, a terra revolvia-se e os canteiros tinham muitas flores. Até os peixes vermelhos, no lago, pareciam novos. O pessegueiro, todo cor-de-rosa, vestia-se de novo. Como todos os anos, por aquela altura. O limoeiro ainda tinha limões e as pereiras já não tinham peras. E o quintal cheirava a tangerinas. Depois, a Páscoa, chegava também pelas roupas novas. Para mim e para os meus irmãos. A Cristina também tinha roupa nova e um avental novo. E ficava tão feliz! E nós com ela. Porque a Cristina sorria como se fosse a mulher mais feliz do mundo. Mesmo quando partia alguma coisa, lá em casa. Sorria. E pedia desculpa. E dizia, foi sem querer, minha senhora. E a minha mãe dizia que ela não tinha juízo nenhum. E eu pensava que ter juízo não era importante. Quando se sorria assim. Com a boca. E com os olhos. E com as mãos. Naquele tempo, o que eu mais queria, era sorrir, assim, como a Cristina. Por dentro e por fora. Depois, no dia de Páscoa, de manhã, muito cedo, íamos para o quintal, eu e os meus irmãos. E a minha mãe, à nossa frente, escolhia as flores e os arbustos que podíamos usar para fazer a passadeira para o Compasso passar. E, mais tarde, a minha mãe confiou-me essa tarefa. E eu, com uma tesoura, cortava, com muito cuidado, as flores mais débeis. Tirávamos-lhes as pétalas e fazíamos uma espécie de pot porri. E as nossas mãos ficavam com o cheiro da Primavera. Depois espalhávamos tudo, em desenhos pouco geométricos, deste o portão, até à porta do halle da entrada. O vinho do Porto já estava na mesa do centro da sala de estar, quando ao longe se ouvia a sineta do compasso pascal. Depois, a minha mãe colocava dinheiro num envelope e pousava-o junto da taça das amêndoas. O meu pai arranjava o nó da gravata e colocava um cartão de visita, dentro do envelope. A minha mãe, voltava a abrir o envelope, e tirava o cartão. E dizia que quando se dá, ninguém precisa saber quem deu. E voltava a fechar o envelope. Definitivamente. E o tilintar da sineta agudizava-se mais e mais, até o som de metal entrar todo dentro da casa. Os meus pais beijavam a cruz. Eu e os meus irmãos e a Cristina beijávamos a cruz e o Senhor Padre dizia sempre algumas palavras, como se rezasse. Benzia-nos a nós e aos móveis e a tudo em volta. Depois bebiam um cálice de vinho, despejavam as amêndoas para um saco de pano e pegavam no envelope. A sineta voltava a manifestar-se, estridente, até à próxima casa. E depois, antes do almoço, íamos à missa. E quando voltávamos o meu pai ficava a ler o jornal como se fosse um dia qualquer. Os meus irmãos brincavam. A minha mãe e eu púnhamos a mesa. Uma mesa nova, como as nossas roupas. E com flores no centro. Da cozinha, a Cristina fazia caretas, quando a minha mãe não via. E sorria. Como se fosse a mulher mais feliz do mundo. Como se soubesse que em todas as Páscoas, mesmo as que não me chegam pelos rituais, eu me lembraria sempre
do seu sorriso.
[Boa Páscoa para todos. muito doce e serena]


Imagem: José Pedro S. do Amaral

8 comentários:

  1. Que lindo texto Marta,que ternura.
    Também hoje dou mais valor aos rituais e compreendo muito melhor o seu valor.
    Uma Boa Páscoa (de muita ternura)

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  2. Ingressei texto adentro e lá fiquei por uns minutos imaginando o jardim, a casa, as pessoas envolvidas, as tradições religiosas e a Cristina, onde anda ela?

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  3. Um detalhe importante esqueci: os pessegueiros da primavera portuguesa.

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  4. Marta, querida, obrigada. Esse texto é como uma cesta cheia de doces :) Uma feliz páscoa para ti também.

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  5. Lindo, esse texto me comoveu. Trouxe tantas lembranças boas.

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  6. obrigada, queridos companheiros do blog.
    muito.
    pelas Vossas palavras.

    - não sei. Carlos. não sei.
    mas gostava tanto, tanto de voltar a vê-la sorrir.

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  7. Marta, chorei ao ler este texto. Não tive uma "Cristina" na minha vida, mas tive tudo o resto que descreves e de uma forma muito intensa, pois eu própria fiz parte dos grupos que faziam a visita pascal e adorava andar com a campainha na mão a anunciar a nossa chegada. Memórias que hoje, ao mesmo tempo, doem, porque hoje não vivo a Páscoa assim, infelizmente, aliás, quase prefiro nem a viver. Mas todos esses momentos estão gravados para sempre no meu coração. Obrigada pela partilha, tão terna, desses tempos felizes! Beijinhos!

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