terça-feira, 4 de maio de 2010

Um momento...

       O pior aconteceu: a fatura do cartão que vence hoje não chegou. Não veio pelos correios, não veio pelo e-mail, não tenho fax, não há como catá-lo na internet. Resultado: vou ter que ligar para o setor de Atendimento ao Cliente.
       Primeiro eu preciso empurrar essa ideia corpo e alma adentro, o que não é fácil. 'Se eu soubesse não teria comprado aquilo, não teria feito o cartão, não teria nem nascido'. São meus gritos dentro de casa; depois eu me acalmo.
       Essa coisa é tão perturbadora para mim, que meu sistema simplesmente trava; repito palavras; atropelo pensamentos; fico tentando fugir do inevitável. Por isso só farei a ligação quando gastar todo tempo que houver nesta tarde. Ao fim do prazo, com uma música clássica baixinha, de fundo, eu finalmente pego o telefone...
       Acontece mais ou menos assim:
       ― Boa tarde. Seja bem-vindo ao disque isso e isso e isso e isso; se você é cliente, digite 1; se você 'ainda' não é, digite 2.
       Essa é fácil; no início são apenas duas opções.
       ― Para isso e aquilo, digite 1, para isso e aquilo, digite 2... e para falar com um dos nossos consultores (a função impressiona, mas eles parecem máquinas), digite 9.
       Estou olhando minhas unhas... (estão imundas!) A música é terrível, e repete umas quinhentas vezes, Um minuto, dois, três... seis, oito  minutos, e finalmente uma voz:
       ― Luísa-boa-tarde-com-quem-eu-falo? Seu CPF, por favor, e isso, e isso, e isso...
       Eu já digitei tudo isso nas opções que apareceram. Só me faltou revelar o tipo sanguíneo; mas mesmo assim eles pedem que eu diga tudo de novo.
       ― O que o senhor deseja?
       ― É que a fatura do cartão não chegou, e o hoje é o dia do pagamento; então eu preciso daquele número... aquele número imenso...
       ― Que número, senhor?
       Eu tenho certeza que eles sabem de que número se trata. Eu falei que a fatura não havia chegado; o dia do pagamento é hoje... Tenho que me lembrar de todo jeito porque ela está em silêncio. Acho que eles também ficam irritados quando nós ligamos; é um ódio recíproco. Vou tentar por aproximação... o número da compensação... é isso?
      ― Entendi. O senhor deseja saber o número da ficha de compensação? É isso? Espere um momento que eu ‘vou estar passando’ o número para o senhor.
      E ela me deixa a ver navios; literalmente, pois antes havia uma música; agora é um oco só, de modo que eu não sei se a ligação caiu.
      Ela retorna.
      ― Um momento... um momento... só mais um momento...
      Estou explodindo por dentro... (por que não nasci rico? Onde foi que sujei essas unhas de laranja? E esse calo no meu pé? O que é isso aqui embaixo?)
      ― Senhor? O senhor pode anotar o número agora?
      ― Posso. (Eu liguei para isso...)
      Anotei. Pronto. Muito obrigado. Vou desligar.
      ― Um momento...  o senhor deseja conferir o endereço, para saber se está igual ao que temos aqui? Esse pode ter sido o motivo do não-recebimento da sua fatura.
      ― Pode ser.  (Tudo bem; sofrimento só vale se for muito...)
      ― Qual é o seu endereço, senhor?
      Então eu digo o endereço, e logo ela descobre que não bate com o do sistema.
      ― Senhor, o seu endereço não confere. ‘Vou estar transferindo’ o senhor para o setor responsável pela mudança de endereço.
      ― Mas, como aconteceu isso?
      ― Meu setor não é responsável pelas respostas, aqui eu só pergunto e anoto. Quando o senhor for atendido, a pessoa ‘vai poder estar alterando o seu endereço’, e o senhor ‘vai poder estar perguntando’ o que quiser. Um momento...
       Essa é a parte em que você começa a sorrir porque não consegue acreditar no que está acontecendo. E não há música... (a partir de hoje só vou usar o cartão do banco!)
       ― Geraldo-boa-tarde-com-quem-eu-falo?
       Acreditem, eu vou ter que explicar tudo de novo, e possivelmente ele ‘vai estar me passando’ para um outro consultor; isso porque a minha região talvez seja administrada por outro setor ou coisa parecida.
      Querem saber como isso termina? Um momento, que eu ‘vou estar transferindo-os’ para o setor de finalização. Um momento... um momento... só mais um momento.

Ricardo Fabião.

6 comentários:

  1. ESpectacular Ricardo... é mesmo assim...

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  2. Ai, e o que irrita mais é o gerundismo, nossa: vou estar te passando, vamos estar verificando...transferindo... Perfeito, é isso aí mesmo!

    Abraços

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  3. Terça-feira da semana passada, perdi um cartão. Liguei para a operadora. Fiquei mais ou menos uns 20 minutos dependurada no telefone, sendo passada de boca em boca e nem músiquinha havia. De vez em quando, eu gritava alô, alô tem alguém aí para ver a ligação não tinha caído. Finalmente, uma atendente resolveu a situação, ou quase, porque ela disse que o novo cartão chegava em três dias e até agora nem sinal do novo cartão. É mesmo muitooo irritante.

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  4. Esta faceta mostra o quanto os homens se distanciaram da comunicação. Chega a dar saudade quando a gente ía ao banco e era recebido pelo gerente. Somos números - e números que devem ser sempre confirmados antes de cada chamada de call centers, que parecem autômatos. É um inferno viver assim. Mas aproveitem, porque vai piorar !

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  5. É bem isso. E a palavra que os call centeres mais utilizam é o irritante: "entendi".

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  6. kkkkkk, achei perfeito! Uma agonia danada ter de ligar pra eles, e realmente, eles nos odeiam!rsrs

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