sábado, 22 de maio de 2010

LEMBRANÇAS

Lembro das balsas com que atravessamos o Rio Guaíba, e depois os arroios no caminho à campanha. Até Bagé, cidade onde nasci, foi uma viagem de três dias com paradas nas fazendas onde nos hospedamos, meu pai e eu. Lembro que plantei uma semente de trigo bem na frente da porta de uma daquelas casas de fazendas. Escreveram a meu pai contando que ela pegou e deu frutos. Depois, passada a época da colheita, tiveram que arrancá-la com alguma consternação, porque ela impedia a entrada à casa. Foi o que me contou meu pai. Lembro de uma poeira sem fim numa daquelas estradas de terra, numa tarde abafada, os vidros da Ford 1950 preta abertos, uma tremenda vontade de vomitar e uma vergonha muito maior de confessar minha indisposição. Lembro de nosso retorno quando em Caçapava, bem no centro da cidade, caiu a balança da Ford, e meu pai, que além de veterinário era também um bom mecânico, nada mais pode fazer senão buscar uma oficina onde a “barata” deveria ser consertada. Lembro que então fomos almoçar na casa de um velho amigo dele. A mulher do amigo nos recebeu à porta da casa de onde vi uma escadaria íngreme, quase infinita. De lá desceu o velho homem que nos acolheu na sala enquanto a mulher preparava a comida. Depois ela juntou-se a nós. Lembro que senti um cheiro de queimado, e que desta vez falei. - É o arroz !, gritou a mulher assustada correndo à cozinha. Lembro que pouco depois ela serviu o almoço, um pouco envergonhada por causa do arroz que trazia ainda o cheiro e o gosto de queimado. Lembro que ela me perguntou como estava o almoço. Lembro que disse que estava bom, e que depois de comer seguimos viagem. Lembro da chegada a Guaiba, da travessia do rio, de chegar em casa. Lembro que poucos dias depois meu pai me contou que seu amigo tinha morrido de um enfarte. É tudo o que lembro.

15 comentários:

  1. Paulo, essas lembranças de infância, das viagens de infâncias com seus cheiros, pessoas e surpresas, podem vir aos pedaços, mas nos dão uma sensação de ter uma vida inteira.

    Bípede Falante

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  2. Verdade, bípede. Volta e meia elas me vêm e estou desprevenido, sem sequer um lápis à mão, e assim eu as perco por momentos, às vezes anos. Mas elas sempre voltam.

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  3. É o que nos distingue dos bichos. Temos recordações.
    :)

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  4. Dizem os neurologistas que não temos nenhuma lembrança de antes dos 5 anos, que tudo que recordamos é invenção, mas eu não concordo nem sob a mira de uma bazuca!

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  5. Paulo, sou de Bagé também... Nítidas lembranças. De outra época, mas dos mesmos sentimentos.

    Lindo texto.

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  6. Deve ser ótima pessoa, então hehehe

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  7. Todos os queridos, em particular Renata, bageense:

    Grato pelos comentários. Às vezes fico com essas coisas na cabeça. Vou postar mais lembranças. Bjs e abraços.

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  8. É, sim! Uma pessoa fora de série. Depois te envio um email com o nome dela. Vai que você a conhece!

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  9. Paulo, eu tenho um teoria furada, mas que levo a sério, de que as pessoas vindas do interior trazem com elas uma chama diferente, vinda dos tempos da guerra do fogo. Qualquer hora escrevo sobre ela. Hoje, estou muito azeda para me aprofundar.

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  10. Oi, Bípede: Toma teu tempo, no stress... Espero a história. Dá uma olhada no Mínimo Ajuste sobre a história de Joaquim Oliveira. Bjs.

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  11. Mas que idiotice, Bípede. Eu estava no Mínimo Ajuste e não me dei conta. Pensava que comentavas sobre um outro post meu. Eh, bien, no stress. Bjs.

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  12. Gosto de ler histórias (assim)até parece que as estamos a ouvir.

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  13. Tão bom poder ler ouvindo... Cada tom, cada pausa, cada alternar no ritmo da respiração. Palavras que deixam escapar a alma de quem as escreve.

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