quinta-feira, 20 de maio de 2010

Some Bartenders Have the Gift of Pardon

10.34 h

Para o bem ou para o mal, encontrei uma posição confortável, um lugar privilegiado para observar o mundo: deixo-me observar, deixo-me avaliar, esquivo-me por necessidade, deslizo numa passerelle invisível do fardo humano da conveniência, do absurdo. Deixo-me sobreviver, resistindo conivente com as misérias alheias, vivo quase sem respirar, mas tenho o dom do perdão. O meu sorriso é condescendente com as confissões que desfilam, pálidas ou ofensivas, exangues ou exaltadas, sempre com a mesma disponibilidade dum homem comum. Sou um empregado de balcão e as coisas que fazem o mundo girar não me dizem respeito; apenas os trocos na caixa, as reposições de cervejas e laranjadas com o prazo a expirar. Deixo-me observar por necessidade, sou mártir numa guerra a que sou alheio, apenas reverto a favor da casa o meu sorriso, as atenções permanentes, a necessidade dum tira nódoas eficaz para um cliente obeso e desajeitado, uma palavra amável que já não faz falta, caída em desuso, que constantemente recupero, apanho do chão, um obrigado e muito boa tarde que se escapa por inutilidade, mas resiste, compulsivamente, pressinto por intuição quase todas as formas quase insólitas de gerir silêncios, esse horizonte imenso que se pressente dia após dia, que me faz acordar pela manhã com a cabeça vazia, necessitado, mas sem urgências, dum desfragmentador no meu disco pessoal, uma limpeza de ficheiros temporários que se renovam continuamente no meu espaço insuportavelmente finito.



11.43 h

Na minha posição privilegiada encontro sempre um espaço, uma pedra onde estaciono o meu olhar sobre as vidas que se vão obscurecendo, que perdem o ritmo continuamente, tal como o meu, tal como a minha pele de camaleão que estala, que perde a rigidez, que circula, que perscruta os pedidos impossíveis, indisciplinados, inóspitos, deixo-me observar, enquanto o meu vocabulário emocional se apaga, como se apaga um disco rígido, lentamente, muito lentamente, sem sequer me preocupar com os ficheiros que deverão ser salvos, apenas a caixa que guarda os trocos me interessa, apenas a caixa que guarda os trocos salva-me, magneticamente, como um sentido único, como a única de todas as salvações possíveis, entre um mundo e um outro, eu no meio, o que nada rejeita, o que nada impossibilita, o que nada revela, mas placidamente observa com um olhar lento de camaleão as casas de banho sujas.

Pretendo apenas saber quando vai terminar a tempestade; então, enxugarei o corpo e vou-me embora. Não quero ser mais este eterno padre a ouvir confissões em open space.


imagem: reprodução de Male Barista Green by Brandon Smith, com permissão do autor,

...texto completo na Linha das Fronteiras, inspirado na canção homónima de Mark Eitzel

2 comentários:

  1. Acabei de ler o texto completo na Linha das Fronteiras: um prazer enorme a leitura!
    Abraços,
    Tânia

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  2. Bah! Fiquei de boca aberta. Não imaginava que o confessor em questão fosse um padre rasgando a batina. Vou lá no Linha das Fronteiras ler o resto.

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