Pegam na caixa com aparente cuidado. É uma caixa de cartão. Diz frágil. Em letras garrafais, vermelhas. Para que todos vejam. E eu vi. Incrivelmente. Mesmo não tendo de pegar nela. É uma caixa de cartão. Sem alma dentro. E é assim que eu me sinto. Sim, sim. Estas coisas que me dão e tu bem sabes como depois tenho de me retirar. Devagar. Fazer um retiro, lá no sítio onde Edgar Morin reflecte sobre o mundo. Mas eu não quero reflectir sobre nada. Até porque, eu hoje, não quero ver. «Ver é estar doente dos olhos». Nem sei como vi a caixa. E a mim dói-me o mundo e os olhos e as pernas. Vim de pé, no metro. A fingir que via tudo à minha volta. Mesmo que numa cidade estrangeira me canse menos andar, estou cansada. E frágil. Imagina que já comprei dois cabos USB! Perdi-os. E precisava deles. E não tenho falado ao telemóvel. Para que a bateria não se gaste. Porque se tiro o carregador da mala, fica esquecido. Esqueço-me de tudo o que preciso. Ainda bem que não tenho as chaves do hotel. Ainda bem que não tenho chaves nenhumas. Ainda bem que não preciso de mim. Assim, frágil.
Vês como estou frágil!
E agora queres que decida se continuo ou não continuo no conservatório. Se o piano é o eixo do meu desassombro. Que decida se é cedo ou tarde para recitar os poemas da Hilda Hilst. Se vamos ou não vamos a um restaurante. Se vou ou não vou para Angola. Como voluntária. Desculpa. Ainda não te falei de Angola? Mas também não falei a ninguém. Só a mim. E à ONG para onde enviei o e-mail com a ficha de candidatura. Chamaram-me. E, agora, não posso ir, sem tomar todas as decisões que me esperam. Coisas sensatas. Nada a ver com isto. Se fosses o Jorge Palma, compreenderias melhor. Talvez. E pedes-me para [re] começar a curta-metragem. E que decida quando. E eu, frágil, insuportavelmente frágil, quase no dead line da loucura. Como o pêndulo de Foucault. Eu, a precisar de ficar quieta como como a pedra da Roseta no British Museum. Protegida, intocável, muda. Mas legível. Como a caixa de cartão sem alma dentro. A dizer FRÁGIL, em letras garrafais. Para que possam, se necessário, pegar em mim com cuidado.
E agora queres que decida a vida toda num quarto de hora. Que decida, aqui, entre reuniões inconclusivas, se vamos ou não vamos viver numa casa junto à praia. Se o jardim, terá dálias e begónias nos canteiros. Se as bicicletas podem ficar encostadas ao limoeiro. Atrás. Junto à porta da cozinha. E queres que decida, assim frágil, irracionalmente frágil, se o mar terá barcos, ao longe, nas manhãs claras e húmidas. E pedes-me que decida qual o vestido que vou trazer, na viagem de regresso, quando voltarmos de Buenos Aires. E que decida a cor dos teus olhos, amanhã. Quando os teus olhos são da cor do tempo que faz. E eu, sem chave nenhuma, a dizer-te que, frágil, me esqueço de tudo o que preciso. Só não me esqueço de estar aqui.
Por isso, não me peças algoritmos. Pede-me, antes, palavras. Letras. Letras não! Que o alfabeto também se esgota. Pede-me números. Algarismos. Ou estrelas. Que deve ser a mesma coisa. Eu não percebo nada de matemática nem de astronomia. Mas sei o infinito. Sei o inesgotável. Sei que, mesmo frágil, em letras garrafais, vermelhas, te posso dar, sempre, números. Um número por dia. [Como se fossem comprimidos contra a fragilidade] Ou estrelas. E se as do mar forem poucas, vamos ao céu buscar mais.
Pode ser?
Pode ser?
[Ainda hoje. Porque amanhã, posso estar irremediavelmente frágil.
E os teus olhos estão de outra cor.]
Adorei Marta... Tem dias que deveríamos realmente andar com letras garrafais a dizer: frágil... porque do frágil ninguém se aproxima, o frágil todo mundo poupa... e há dias que precisamos que nos poupem... por um bocado, por favor... SILÊNCIO NÃO ESTOU CÁ!
ResponderExcluirMas se realmente precisamos o melhor é impormos nossa fragilidade... Mesmo com uma "pronúncia do Norte"! Parabéns pelo post... Muito bom!
Marta, este foi um dos melhores posts que já li em toda a minha história de blogueira. É de uma qualidade rara, raríssima.
ResponderExcluirConcordo Bípede...
ResponderExcluirQue texto poderosíssimo. Tao íntimo, de tao fundo. Lindíssimo. Adorei.
ResponderExcluirSomos todos frágeis, muito mais do que geralmente gostamos de admitir. E temos direito a essa fragilidade, temos direito ao autocolante vermelho de letras enormes. E, se o colamos, se o assumimos, temos direito seguramente a um trato mais cuidado, um pegar mais delicado.
Difíceis certas encruzilhadas da vida. Às vezes nao há mesmo como nao confiar apenas nas estrelas, uma de cada vez, como os dias.
Tirei o chapéu para este texto.
ResponderExcluirTexto maravilhoso, Marta. Lembra o "De verdade" (em Portugal parece que tem outro nome) do Sandor Marai.
ResponderExcluirVoltei para ler de novo. E, de novo, estou impactada.
ResponderExcluirfeliz por terem gostado. muito feliz :) obrigada.
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