Outro dia, porém, passei por lá. Qual não foi a minha surpresa ao ver um riscado amarelo, meio desbotado, no meio da rua. Quadrados lado a lado para um jogo de rua muito popular e comum. Lá, defronte à casa que habitei. Não pude deixar de parar o carro e descer. A vizinha saiu para olhar. Ainda era a mesma senhora, que muitos anos atrás, nos fez cobrir aquela tinta. Na ocasião, meus filhos aliados aos amigos, ainda pequenos, mendigaram um resto de esmalte amarelo em uma obra próxima e desenharam a sua tarde de domingo no asfalto da rua. Nada mais saudável. A nossa mal amada vizinha, por outro lado, entendeu estarem as crianças a sujar a rua e protestou. A brincadeira não pode prosseguir e a “arte” teve que ser coberta. Novamente por socorro da construção das proximidades, uma providencial nata grossa de cimento escondeu a infância. Nada como um ano após o outro, um pouco de chuva e outro tanto de carros passados, para que a tinta amarela se revelasse. A infância das crianças já foi longe e eles talvez nem lembrem mais daquela tarde, mas é certo que a senhora que ali mora voltou a ter com o que se preocupar.
Passamos pelos lugares e deixamos marcas. Algumas são visíveis para qualquer um, já outras parecem ter sido feitas com tinta invisível das caixas de mágicas para crianças. Daquelas que ensinavam a fazer “sangue de diabo” e a tal tinta, em que se revelava o escrito, à base de limão, no calor de uma lâmpada.
Acredito que estas marcas são obras do inconsciente, de modo que um dia possamos encontrar o caminho de volta. Talvez para correção de rumos, talvez para ruminar a vida ou, ainda, rever os amigos. Alimentar a alma, alimentar a poesia a procura da essência, do resumo. São pequenos laços de fita nos dedos a lembrar-nos de nós mesmos.
Lembrança útil e necessária no caminhar da curta, mal aparelhada, anacrônica e, por vezes, contraditória existência. Mas, como disse, não moro mais naquela rua. Habito outras terras, outras gentes, na combinação feliz e equilibrada de um presente, colorido pelo passado, mas vidente.
FOTO : DAQUI
TEXTO originalmente publicado AQUI
FOTO : DAQUI
TEXTO originalmente publicado AQUI
Quem não se lembra de brincar à macaca (é como se diz aqui) no recreio da escola? ou na rua para os mais afortunados?
ResponderExcluirEssas e outras lembranças, são presentes que ninguém tira (nem mesmo uma vizinha).
Gostei muito de ler este texto.
Amei seu texto! Me deu uma saudades da Rua Felix Guilhem, na Lapa, em São Paulo, onde passei toda minha infância. Obrigada.
ResponderExcluirCom carinho,
Silvia
"Senta perto e me conta o que você sentiu quando viu o mar pela primeira
vez e o que sente quando olha pra ele, tantas vezes depois. Se tinha
jardim na casa da sua infância, me diz que flores riam por lá. Conta há
quanto tempo não vê uma joaninha. Se tinha algum apelido na escola. Se
consegue se imaginar bem velhinho. Fala da sua família, a de origem ou a
que formou. Das pessoas que não têm o seu sobrenome, mas são familiares
pra sua alma. Fala de quem passou pela sua vida e nem sabe o quanto foi
importante. Daqueles que sabem e você nem consegue dizer o tamanho que
têm de verdade. Fala daquele animal de estimação que deitava junto aos
seus pés, solidário, quando você estava triste. Diz o que vai ser bacana
encontrar quando, bem lá na frente, olhar para o caminho que fez no
mundo, em retrospectiva."(Ana Jácomo)
Adorei este texto. Obrigado. Vou postar um da "Cachorrinha Laica"... lá em cima...
ResponderExcluirNa fase em que me encontro, com a casa em que cresci sendo invadida por olhares estranhos e curiosos e a venda porque assim tem de ser, o seu texto faz-me sofrer.
ResponderExcluirBípede Falante
para volver a ser
ResponderExcluircasa
y
c
a
m
i
n
o*
1/
2/
3/
CIELO
un beso*