quarta-feira, 5 de maio de 2010

A BARCA

Já que os amigos do Mínimo Ajuste gostam mesmo de textos, envio um conto antigo, guardado numa gaveta mofada.

A pequena barca deixou o porto enquanto eles assistiam à cena de dentro do carro parado à beira da praia coberta de uma bruma ainda indefinida, mas capaz de instalar no espaço de sua dor algo que nele ainda faltasse. Falariam de suas vidas, de suas decepções, falariam de tudo, menos de sua felicidade, de sua descoberta amorosa recente, se é que ela existia ou teria, de fato, acontecido. A barca se distanciava do porto assim como o ruído dos motores que já quase não se ouviam e a fumaça da combustão que, ao longe, perdendo a cor escura da queima instantânea, se misturava ao ar cinzento que recrudescia anunciando chuva. Ele a tinha convidado para sair de casa para que pudessem falar um pouco, para que pudessem respirar outro ar, puro, desprovido das moléculas daquele que insistia em aprisioná-los dentro da casa, na sala, na cozinha, no banheiro, no quarto em que haviam dormido assexuados, sem carícias, sem palavras, apenas dúvidas. Tinham sido infelizes, inertes como vegetais, meros seres que se entregaram passíveis diante do irrecusável convite ao repouso da noite virando a página do dia. O amor, quando cansa, não dá palavras, apenas constrói a cenografia silenciosa, utiliza gestos conhecidos que, ainda assim, relutamos em compreender. Ele a tinha convidado para sentarem num banco da praia, mas ela sugeriu que fossem de carro, pois ameaçava chuva e poderia esfriar. Ela dirigia. O carro deixou o calçamento do balneário e adentrou um caminho ermo, sujo, abandonado por encardidos vestígios de lixo, sacos plásticos, garrafas vazias, latas enferrujadas... Então ela sugeriu : - Vamos até o fim ? Ele não conhecia o lugar, portanto não conhecia o fim, não sabia se ele estava próximo ou distante, não podia prever quanto tempo teriam de andar até chegarem a um ponto quieto, aquele fim onde não mais houvesse vozes, não restassem ou persistissem estímulos a cortar a conversa que teriam - ou não -, ele não sabia ao certo se a teriam. E não quis perguntar onde ficava o fim. O carro andou uns dois quilômetros que pareceram um percurso interminável e ele sugeriu que parassem no ponto onde encontraram uma pequena vila de pescadores, alguns deles recolhendo peixes da barca que agora viam a afastar-se e transferindo-os para caixas plásticas dispostas sobre o trapiche de tábuas podres onde estavam outros homens que ajudavam naquela tarefa, e uma criança, uma menina que brincava ali. As vozes do pequeno grupo eram perceptíveis, embora estivessem distantes uns cinqüenta metros. O vento soprava em direção ao carro em que o ar pesava saturado de silêncio. Então, baixaram um pouco os vidros e, pelas mesmas frestas que se abriram ao alento, penetraram mosquitos que agora zumbiam em seus ouvidos, mas eles não fecharam os vidros por causa do calor que fazia ali dentro, ali dentro deles mesmos. E, com alguma dificuldade que não logrou esconder, ele começou a conversa. Perguntou a ela o que se passava, o que pensava, por que estava assim tão triste. Ela respondeu que era por causa da filha, a filha que estava por sair da casa em que as duas viviam, iria deixá-la só, porque era a única pessoa que tinha neste mundo. Tinham estado ligadas a vida toda, protegendo-se, indo de um lado para o outro, à escola, ao trabalho, à faculdade, ao cinema. Desde a separação da mãe, há muito tempo, tinham se acordado durante todos aqueles anos sob o mesmo teto, tinham feito muitas viagens, trocado todas as confidências, tinham construído o amálgama, a simbiose, o mundo único das duas, e agora esta separação emergia como uma insensatez, uma brutalidade, como a violência de um estupro. Por que tinha que ser assim - perguntava ela -, por que as coisas tinham acontecido tão rapidamente e fora de seus planos ? Ele não conhecia que planos eram aqueles. Enquanto falava, ela verteu três ou quatro lágrimas que quase imperceptíveis lhe vieram aos olhos. Era um pranto seco que lhe subtraía o viço do rosto, como se dele se alimentasse a umidade própria do lamento silencioso e contido. A barca já ia distante. Nela, dois homens e a menina que antes apenas brincava, uma menina de uns dez anos, blusa vermelha, cabelos loiros atados à nuca. Na popa ela levava o timão sob sua responsabilidade, carregava o destino daquelas vidas embarcadas no trapiche, assim como a sua própria, enquanto os dois homens se dividiam na tarefa de limpar as cavernas do fundo da barca. A menina estava ali, como um arraes, um prático experimentado que conduz as embarcações pelos canais, que as dirige para os outros até ancorá-las em porto seguro. Uma criança apenas, acostumada àquilo tudo... E, ainda chorando em intervalos curtos, como a substituir sua parte no diálogo que não progredia, tamanha a necessidade que tinha de pensar - ou de sobre nada refletir -, e para que qualquer fato pudesse se produzir a ponto de modificar aquela situação incômoda, intentando fazer calar qualquer voz antes que esta viesse, ela olhou o horizonte próximo numa pequena curva da península na qual se viam algumas casas junto à linha d ’água e perguntou : - Faz pouco, ali estava menos nublado, não te parece ? De fato, ele havia já observado aquilo porque seus olhos, enquanto falava alguma coisa, ou tentava escutar as poucas palavras que à força saiam dela como enigmas, tinham ficado presos no horizonte, já não se dirigiam aos dela, que tampouco miravam os dele, porque ela escondia o rosto para o lado da janela do carro, desde quando soluçou secamente pela primeira vez. Com alguma indiferença, ele apenas respondeu que sim, porque a pergunta não fazia sentido, assim como não se impunha a razão de uma resposta que estaria para sempre muito distante do foco da conversa que entretinham. Ou talvez se impusesse, ele era quem não via, ele era que não compreendia, não divisava, não percebia as metáforas pelas quais ela se comunicava, como se o uso próprio e simples das palavras estivesse ali vedado a ambos, apenas de signos poderiam se utilizar, só o silêncio pesado da mensagem tácita falaria então, substituindo o discurso natural do pensamento, a simples expressão do diálogo, o verbal e o corporal. - Um dia - ele pensou sem querer dizer -, quando estivermos sós, nossos filhos não lembrarão de nós como hoje, sob nossa dependência - ou sob nossa vigilância inútil -, isso é certo. Mas terminou dizendo, porque pensou que era exatamente o que deveria falar, porque tinha passado pela mesma experiência, ainda que sob condições apenas diversas. - Eles não mais estarão - prosseguiu numa fala cadenciada como uma preleção - e nós não poderíamos pensar que eles tivessem que estar conosco para sempre. O amor filial é um fogo que se extingue a cada dia, e que antes de tornar-se uma lamparina vagamente ardente - porque todo o amor será lembrado de alguma forma e em alguma extensão, assim como desejamos crer com insistência -, o amor filial será dividido, será loteado, será roubado, vilipendiado por outras influências, assim como aconteceu conosco, quando passamos a amar o amor único, o amor sonhado, o amor verdadeiramente amoroso, a paixão que nos fez deixar a casa dos pais e, com ela, os pais, quando deles passamos a nos esquecer por algum tempo que depois passou a ser o tempo permanente, o tempo de sempre e para sempre. - O mundo é agora, mulher, acorda ! - teria dito, queria ter gritado, mas isso não fez, não tinha o direito, não tinha a coragem. Seria um intruso, seria ele, do outro lado, o vilipendiador, o estuprador, o algoz da presumível idéia da existência permanente do amor filial. E descendo do carro sem dizer palavra ele caminhou lentamente pela praia, amassando as conchas e o lixo com os pés, pisando os juncos ressequidos pela solidão da areia, até chegar à água que corria rápida pela correnteza, embora não se produzissem ondas, nenhuma onda, nenhuma conseqüência senão a atração de umas esparsas gaivotas pequenas em vôos rasantes à procura de alimento. Ficou a olhar aquilo tudo, as gaivotas, o horizonte já inalcançável no qual um imenso navio, como um fantasma que se afasta, furou a névoa cruzando o canal em direção a um outro lado do mundo distante daquela vila pobre, abandonada num dos cantos mais tristes da terra, daquele único ponto dela em que se passava aquela história própria. Faltavam-lhe poucas horas para deixar a cidade, e ele as media agora numa contagem regressiva, como uma bomba, como mais uma morte que lhe batia à porta.

6 comentários:

  1. Sempre temos instantes em que vamos embora de onde queremos ficar.
    Cadinho RoCo

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  2. Que dolorido este descompasso preso ao afeto e às muitas mortes e aos muitos vazios que temos sempre de enfrentar.

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  3. Bípede, isso foi escrito há muitos anos, e foi difícil - mas frutífero.

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  4. Paulo:
    Difícil elaborar tod esse texto que nos dá uma leque de leitura, principalmente quando percebemos que desejamos continuar, realizar, mas não há mais tempo, somos levados. Me lembrei, dele....

    "Quando eu for, um dia desses,
    Poeira ou folha levada
    No vento da madrugada,
    Serei um pouco do nada
    Invisível, delicioso
    Que faz com que o teu ar
    Pareça mais um olhar,
    Suave mistério amoroso,
    Cidade de meu andar
    (Deste já tão longo andar!)
    E talvez de meu repouso...
    Mário QuintanCom amor e carinho,
    Silvia

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  5. Si, que bela associação que fazes. Bj. Paulo

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