terça-feira, 4 de maio de 2010

Mulheres em Aguarela

(sobre esboços de Sara Centeno)

“Nenhum medo é insuportável,
a menos que sobre tempo para pensar nele” 

Arturo Pérez-Reverte



Estou aqui.

Enquanto escorre pelos azulejos a água feita humidade desfeita, observa-me, estou aqui, ainda sou um pedaço do tempo que ficou, do tempo que ficou suspenso por não te saber junto dos meus dedos, das minhas mãos, dos meus pés, pequenos e frágeis. Enquanto a água corre na torneira que vou deixar mal fechada, enquanto aguardo o teu sorriso abraçando-me nua, enquanto a tua mão jamais, alguma vez me agarrará as minhas palavras que fogem, que ficam, que partem vazias pela tarde, demasiado tarde olharei o espelho para duvidar se estive ou estarei aqui.

Abraça-me, abre-me os braços, vamos voar por esta noite pela cidade fora ou dentro, vamos acordar-te dessa ausência que magoa enquanto retiro os meus cabelos frágeis do ralo da banheira, enquanto a noite adormece lentamente, lá fora, a vida desta cidade que amanhã de novo acordará. Abre-me os braços e deixa-me sozinha, aproxima-te, abraça-me, toca-me de leve com o teu olhar, longe, os meus seios flácidos como as minhas palavras que fogem, a minha carne enrugada por cada momento meu, por cada sorriso que entardeceu nos lábios meus. Olha-me, estou aqui, sentada na borda desta banheira antiga, solta por este cansaço antigo, diz-me, porque estou aqui, dos risos que me emprestaste por uma noite, tantas, e porque estou aqui, mãos enterradas no meu pouco cabelo solto e longo, diz-me das palavras que ficaram entre os nossos ouvidos, e se de não as ouvir alguma vez, jamais tive medo de estar aqui, agora.


Antes, enquanto aguardava as estações passarem uma após outra, corríamos, ficávamos, corpo sobre corpo horas após horas, perdidos ou achados, guardando as palavras para depois, desarrumavas no meu interior os silêncios guardados, resguardados nos nossos braços, os meus, abertos num eterno cristo perfeito, no meu corpo agora rasgado por rugas intermináveis, um corpo vulgar resguardado para ti, um corpo vulgar que já foi feito de carne macia, suave, os teus dedos suaves que o percorriam sem cansaço, os teus dedos suaves agora ausentes, tu. 

Por onde andará agora o que restava da tua carne, antes de a terra a tragar, por onde andarás tu, por onde andarei eu que estou aqui?

22 Agosto, 2004


That I Would Be Good por Alanis Morrissette



|breve aparte: aqui há dias, escutava com um pouco mais de atenção, à letra, do That I Would Be Good e vasculhei o computador, que tem muito mais memória que eu, mas não faz posts sozinhos, dum texto que tinha feito lá para os lados de 2004… havia algo em comum, uma sensação que tinha andado pelos mesmos "campos da solidão" percorridos, aqui, pela Alanis; quando o encontrei, coloquei como comentário, parte deste texto breve, no blog da Amiga Betina; aqui está! 

Procurei o suficiente pela autora do quadro que me inspirou este, mas em vão… um dia irá parar às mãos da Sara!|

3 comentários:

  1. Simplesmente espectacular...Adorei... Parabéns... às vezes percorrer o pasado faz bem e reaviva o presente...se não o teu, o meu reavivou. Obrigada.

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  2. Maravilhoso... Aliás, me repito, mas é mesmo!!!

    Abraços

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