domingo, 11 de julho de 2010

À NOITE

Cecília vinha descendo a Haddock Lobo quando deu-lhe na telha parar no Bareto. Estacionou e foi. Um Jazz agradável a esperava. Som ao vivo. Cecília estava com 52 anos, bastante conservada e se cuidava em todos os aspectos. Baixinha, usava saltos absurdos e procurava compensar com roupas que lhe alongassem o perfil. Tinha cabelo bem comprido. Era uma mulher solitária e amargurada pela vida, por três casamentos e nenhum filho. Seu corpo fora tocado por inúmeros homens e até algumas mulheres, mas sua alma ainda era virgem. Jamais tivera um relacionamento digno do nome. Um parceiro de verdade ou, como queiram, um companheiro. Sentou-se, instalou-se confortávelmente numa das poltronas e pediu um Martini. Saboreava o seu, quando notou estar sendo “filmada”. Disfarçadamente procurou inteirar-se. Após alguns goles, pediu a conta e, lentamente, como quem quer ser seguida, foi em direção à porta. Seu truque de olhar discretamente, em passant, e sorrir sempre funcionou. Foi abordada no saguão do Hotel Fasano, em cujas dependências se instalou o já antes tradicional Bar. É certo que, na sua opinião, o Bareto da Rua Amaury era mais interessante. De alguma forma perdera charme na mudança. Mas enfim, um homem de seus quase 50, denunciado pelo cavanhaque com muitos fios brancos, disse-lhe em voz suave: “posso falar-lhe?” Cecília prontamente sorriu e assentiu com a cabeça. A conversa, típica dessas ocasiões, primeiro desenvolveu-se ali mesmo, ambos em pé, um ballet de gestos e posturas. Depois se transferiu para o restaurante Alucci Alucci, na mesma rua, quase em frente. Ela pediu um Talharim ao limão e ele um Atum negro com purê de banana da terra. Sofisticadas combinações do Cheff Edir Nascimento. Para acompanhar pediram uma garrafa de Anjou Le Rouchefer, safra 2002. Para a sobremesa pensaram em um Creme Bruille de maracujá e uma Sopa de chocolate com avelã. A conversa transcorria dentro dos padrões quando Cecília pediu licença, e foi ao Toillet. Retocou a maquiagem, já por si só discreta, e retornou. Para a sua surpresa, o cavalheiro não estava à mesa e, após inteirar-se com o Maitre, descobriu que a conta ia ficar para ela. Levara um golpe, daqueles dignos de uma boa gargalhada, se não tivesse sido com ela. Furiosa, deixou o local maldizendo todos os deuses e demônios de que se lembrava. Marcou bem a cara daquele sujeito. Pensou e verbalizou muitos palavrões, inclusive assustando os circundantes. Jamais havia passado por nada parecido e imaginou-se desamparada pelo universo. Cecília tinha dessas coisas. Eventos bizarros, e outros eventos, ela creditava ao cosmos, aos astros e toda sorte de gnomos e elfos que habitavam seu mundo. Canceriana típica, pensou logo em refugiar-se na toca, proteger-se e encontrar em si mesma o seu já conhecido eixo de abrigo. Sua vida era uma sucessão de decepções. E cada vez mais procurava em seu mundo interior respostas para essas agressões constantes. Fechava-se cada dia mais.
Passaram-se alguns dias e ela foi parar no Hospital. Estava com a cara cravejada com o que restara do vidro dianteiro de seu Corolla. Durante as inevitáveis suturas, apesar de grogue, ouviu a conversa das enfermeiras: “E o sujeito?”...”Esse já era...” Sorriu ao baixar as palpebras e, apesar da dor, sentiu um imenso alívio e a sensação de bem estar, porta de entrada para o mundo de Morfeu.

ORIGINALMENTE AQUI

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