sábado, 31 de julho de 2010

POESIA JAZIDA


E na lápide: "Cansou de tanto pensar." Incrivelmente exausto por ter passado a vida inteira analisando, questionando, enxergando, desvendando, reinventando. E sem nunca ter conseguido esgotar-se. Um anormal que pensava ser normal demais. Alguém que não aceitava somente sim ou não, que chegava a irritar-se com um talvez. Ele já não cabia mais dentro de si, porque à medida que os anos passavam, tornava-se mais ilimitado, dentro de uma cápsula protetora de limites definidos. Só agora percebe que nasceu inspirando a poesia do mundo, e seu primeiro choro foi seu primeiro verso. As brincadeiras da infância eram poesia. Seus desenhos e seus sonhos eram poesia. Só não era poesia a sua percepção do tempo. Mas agora é. Alegra-se com sua própria imprevisibilidade, qualidade sua, mas não tolera a imprevisibilidade daquilo que escorre de suas mãos, sendo que disto, vez ou outra, não consegue fazer poesia. Sabe que tem coisas que não cabem em seus poemas. Sabe que nem tudo pode ser traduzido em palavras. E esse ínfimo perdido em seus pensamentos é sua tristeza - que ele transforma em revolta, porque diz-se ser nem alegre nem triste. Esta é sua própria porção inatingível e inexplicável. Vivendo, ele passeia no comum e vê o que poucos veem: a beleza do horror e a tristeza da perfeição. Sabe que começou a vida sozinho e a terminará da mesma forma. Mas isto não lhe causa medo: ele tem a poesia, e ela é a sua redenção. A melhor companhia. A eterna companheira. A única coisa certa. Inexata, incontrolável, mas criação sua. A continuação. E na lápide, melhor dizendo: "Cansou de tanto pensar, desistiu de fazer caber no mundo sua poesia." Aqui jaz, poeta.

(Texto já publicado em O Passar dos Dias)

4 comentários:

  1. Olá, Renata Bezerra

    Poesia jazida, mas muito viva. Melhor: poesia jazida, mas com enorme percepção de vida – “... e seu primeiro choro foi seu primeiro verso”.


    Gostei muito!

    ##

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  2. Daqui e de lá e de outros lugares seguimo-los e seguem-nos com palavras de circunstância, com olhares de curiosidade, com o silêncio - cujo significado desconheceremos sempre -, com a indiferença (que dizem vir a ser a ideologia do futuro). Contudo, prossigamos...

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  3. Na minha opinião, esse é um dos melhores textos que já escrevi... É o meu queridinho :)
    Como se fosse um breve resumo do pensar poético.

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