quinta-feira, 10 de junho de 2010

PUZZLE

O quebra-cabeça jamais fora devolvido a sua caixa. Depois de montado, eu o ostentava orgulhosamente sobre a mesa, e iniciei o rito de ir olhá-lo, de hora em hora, com a esperança inconfessável de que as pequenas fendas entre as suas partes desaparecessem, soldadas e aplainadas por qualquer arte do tempo. Pouco tempo, se possível. Seria uma imagem integra que não pudesse ser retalhada, por uma lufada mais forte de ar.
Não pude evitar que ele aparecesse desalinhado algumas vezes; coisa de fácil reparo, no entanto. Mas, começava a acontecer com freqüência. Até que o encontrei embaralhado, o que me provocou uma estranha ira, daquelas de trincar os dentes, de cerrar punhos, de rosnar como um animal. Porra! Passei a mão sobre a mesa jogando a minha imagem desconstruída ao chão. Quebra-cabeça de merda!
Fiquei olhando como um estúpido para as peças espalhadas. Procurei por elas, antes mapeando sua localização para então me ajoelhar e recolhê-las uma a uma.
Remontar a minha imagem foi uma operação que se iniciou sob o peso de uma desilusão. Aquilo jamais teria se soldado sozinho desde o início. Que bobagem! Mas prossegui com a reconstrução apenas pelo desafio de rever o quebra-cabeça montado. Logo já me envolvia no prazer de desafiar a minha memória e rapidez. Uma corrida comigo mesmo! Apurei a percepção da coincidência de linhas, da extensão dos campos de cor, das formas negativas. Quando estava para terminar, tive a intuição de que faltariam peças. Olhei ao redor em sumária busca, mas prossegui.
Eu estava certo: faltava uma peça! Há de estar por perto. Procurei de todas as formas, e nada!
Foi penoso constatar aquele primeiro extravio. A finalização impossível, a  expectativa  permanente a partir  
daquela tatuagem escavada, ausência desenhada pelo contorno das peças vizinhas. Era sobre aquele ponto que o olhar primeiro incidia. O buraco sugava todo o quebra-cabeça como uma estrela que se apagasse; um ralo conceitual, um sorvedouro de sentido. 
Deixei aquela porcaria montada sobre a mesa, daquele jeito mesmo, falha, inacabada. Era outro tipo de permanência.
Dali em diante outras peças foram se perdendo. A cabeça já estava quebrada mesmo. Por fim, sobraram quatro peças que não podiam mais se perder. Era questão de jogá-las no lixo. Mas eu não podia fazê-lo. Pensei: quatro pontos cardeais. Assim os dispus. Vez ou outra, sem nada por fazer, me sentava à mesa e, com o queixo apoiado na palma da mão, ficava a lhes dar uns petelecos para que se chocassem. Outra bobagem.
Mas, afinal, qual era a imagem estampada no quebra-cabeça? Não me recordo. Só me lembro do desenho vazio da peça faltante. E dos pontos cardeais, claro.

4 comentários:

  1. Esssspetácular... Tudo é uma questão de foco e o foco, uma questão íntima e pessoal. "Era sobre aquele ponto que o olhar primeiro incidia. O buraco sugava todo o quebra-cabeça como uma estrela que se apagasse; um ralo conceitual, um sorvedouro de sentido." Adorei isso. Inteligente demais, sensível demais.
    Marcantonio, me encantei com seu texto.
    Convido-o a visitar meu espaço e tomar um chocolate comigo.
    Beijos.

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  2. Marcantonio: Lindo seu texto. Encantador, e me vi leno-o em aspiral!
    No mes de Novembro de 2009, enviei a todos meus familiares o seguinte:

    "Tenho considerado a importância da amizade. Da importância da Família na vida de cada um!
    Faz tempo que penso sobre a facilidade com que nos tornamos superficiais, até mesmo em nossos relacionamentos mais íntimos.
    Andamos tão imersos em nossos problemas, que temos dificuldades para enxergar os que estão à nossa volta.
    Nosso foco é o eu. Meu foco?
    O que ainda não consegui resolver.
    Como se estivéssemos em busca da solução de um quebra-cabeça do nível mais desafiador, nos distraímos com o passatempo de nossas dores, nossas fragilidades, nossas confusões emocionais.
    É curioso. Ao mesmo tempo em que temos à disposição diversos instrumentos tecnológicos que viabilizam a aproximação entre as pessoas, seus corações estão cada vez mais isolados.
    É triste. Jovens deprimidos, desesperados, sozinhos. Essa é a realidade de muitas pessoas que conheço. Mantém perfis com centenas de contatos em sites de relacionamento, inumeráveis “amigos” de MSN, mas que não são capazes de ter sequer um relacionamento saudável, honesto.
    É angustiante: Estamos nos acostumando aos “relacionamentos-aperitivos”. Desfrutamos um pouquinho de cada pessoa, em cada lugar que passamos. E não saciamos nossa fome de intimidade, nossa sede de compartilhar alegrias e dores. Com isso, estamos nos tornando obesos. Doentes.
    É preocupante: Fico indignada com a facilidade com que sucumbimos à velocidade do tempo, ditado pelas relações de mercado. É preciso correr para atingirmos o futuro, porque “o tempo não pára”. É preciso viver com intensidade, porque “o tempo não pára”. É preciso realizar, porque “o tempo não pára”. É preciso conquistar, porque “o tempo não pára”. E as exigências e cobranças outorgadas pela sociedade também não param. Lógica cruel.
    É desolador. Famílias começam e acabam com uma rapidez inigualável. Não há espaço para diálogos. Daí, é impossível reconhecer as necessidades dos outros ou os próprios desacertos. Reconhecer é uma iniciativa que causa dor, visto que gera atitude de mudança. E quem quer sentir dor? Mudar para quê?
    Ao pensar nessas coisas, percebo como é importante ter uma família e verdadeiros amigos.
    Eles são verdadeira mostra do cuidado de Deus conosco.
    São preciosos porque nos dão a oportunidade de crescer, de enxergarmos a nós e ao Pai.
    Cuidam da gente nos momentos dolorosos e quando achamos que nada de mal está acontecendo.
    São amáveis porque nos ouvem e porque nos confrontam. São importantes porque não se omitem.
    Fico impressionada pelas formas inusitadas com que tenho podido aprender sobre a importância da família e da amizade.
    Sobre ser corpo de Cristo e depender das pessoas. As lições mais preciosas (e mais instigantes) dizem respeito à gratidão e ao amor. Praticá-las não tem sido fácil, confesso. Mas que bom que tenho pessoas pacientes à minha volta. Peço a Deus que me ensine a retribuir e a multiplicar, se achegar a seus familiares, valorizá-los, dizer o quanto são importantes na sua vida, enfim, ter amigos e ser amiga.
    Deixo aqui um singelo agradecimento a todos a quem, hoje, eu chamo de minha familia e de amigo (a).
    Vocês são valiosos demais. É muito bom poder contar com vocês."
    “E a vida sem famliares e sem amigos é como o céu sem estrelas, pois são eles que nos iluminam nos dias mais escuros.”
    Achei lindo esse Texto.
    E se desjar veja ao Poema lindo:
    Quebra-Cabeça:
    http://www.youtube.com/watch?v=e5OlxtTILVs
    Com amor e carinho,
    Sílvia

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  3. Belíssima e rara prosa. Profunda, de rico subtexto. Grandiosamente, literária.

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  4. Lua Nova, obrigado. Irei visitá-la com todo prazer.

    Bípede, obrigado sempre, aqui e lá no Diário. Sim, subtexto cheio de peças e eu me procurando no meio delas.

    Sílvia, obrigado. O seu texto é muito bonito. A imagem do quebra-cabeça é riquíssima. Uma das possibilidades mais bonitas é enxergá-la como a representação de um todo significativo que não pode ser entendido sem todas as partes. Bom para uma humanidade com que sonhamos.

    Abraços pra vocês!

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