sexta-feira, 25 de junho de 2010

Do amor e outras histórias

À senhora Aurora devo-lhe a primeira imagem do muitíssimo - 7/8 anos de gente e a afirmação dela “o meu pessegueiro este ano tem triliões de pêssegos!” Triliões, era muito mais do que eu conseguia imaginar, muito e tanto. Ainda hoje, quando o espanto, perante o imenso me atinge, à memória chegam-me triliões de pêssegos dourados pendurados numa árvore anónima que nem cheguei a conhecer, mas que num Verão se permitiu a tal ousadia. A senhora Aurora que já nesse tempo usava os saltos mais altos de toda a freguesia, elevando 70 e muitos anos de gente uns centímetros mais acima, continua a usa-los passados todos estes anos para mim e para ela. Já não a via há muito, já nada lhe sabia há muito. Soube-a esta semana, quando alguém me sussurrou a morte perante o meu espanto. O senhor Carlos, o senhor Carlos que fazia madeira a partir das árvores e coisas a partir da madeira, morreu num susto um deste dias. Deixou a Aurora suspensa nos seus saltos e órfã de porto de escuta. Nunca o ouvi falar, porque ela falava por ele e para ele. Anos, anos, anos e agora que ele morreu e ela não tem com quem falar, fala com quem sempre falou, com ele. A dona Aurora, três da tarde de um tórrido dia de Verão, enfia os saltos pelos paralelos e chega ao cemitério. Fala-lhe: “oh Carlos tens tanta terra aí por cima de ti; oh Carlos e quando chove?; oh Carlos desculpa que eu ás vezes era tão chata; oh Carlos tu estás bem?”. Olho-a de longe com um sorriso que subitamente se quebra em água.
Olho-a e sei o Carlos longe, tão longe como triliões de pêssegos dourados, onde talvez lhe chegue a voz dela, num sussurro de que afinal, ele sempre precisou para viver- aqui ou lá. Ela há-de voltar a casa, tropeçando os oitenta e muitos anos nos paralelos da aldeia e falando para ele, como o fez toda a vida, porque em algum lugar ele vive.

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