terça-feira, 22 de junho de 2010

UM MESMO E OUTRO

Para continuar é preciso
Suturar as fendas dos velhos mapas
E refazer antigos saltos mecânicos
Agora de trampolins mais baixos.
O arrepio de medo é o mesmo,
Como são os mesmos
O chão eriçado de vergônteas,
O sal entre as pedras
E o vento predicante
Soprando no meu rosto
nu de perguntas.

Eu é que não sou o mesmo que adormeceu
E realinho meus cabelos endurecidos
E afio-me as esporas
montado no dorso de uma fera olímpica
com focinho nublado e frio.
Agora convoco silêncios revoados
E toco bruscamente os ombros caídos das coisas,
Assustando flores com gritos fisionômicos.
Eu sou outro, um emissário
Mais atento aos bilhetes,
Perplexo com o perfil cortante das letras
Que, afinal, se unem mais por cansaço.

Agora atento mais aos ralos das pias,
Aos cantos dos parapeitos ensolarados,
E à pele mais descolada das minhas costelas.
Percebo mais a divergência trêmula dos meus dedos
E a estrutura precária da minha face
Com lábios precavidos de ventríloquo
Que dão voz ao confidente infiel
Sentado sobre os meus joelhos feridos,
A espiar o medo envelhecendo nos meus olhos
Cansados de amar imagens destemperadas
Desertando, transpirando adeuses ríspidos,
Adeuses sem modulação,
Adeuses logo à boca dos corredores estreitados.
Não vejo mais meros acenos desinteressados
E o ar que as palavras deslocam é gélido
Como as vidraças trincadas
Refratando a luz do mesmo sol
Que dilatava as veias da minhas manhãs
agora enfartadas de torpor.

3 comentários:

  1. Nossa! Que coisa mais linda, de parar a respiração. Não sei nem o que dizer de tanto que sinto.

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  2. Marquinho...nossa, que beleza de texto! "E toco bruscamente os ombros caídos das coisas,
    Assustando flores com gritos fisionômicos.". Esse outro, bem mais atento às coisas, aos detalhes, também tenho sido: tocou-me muito o seu texto...Vou guardá-lo comigo.

    Abraços,
    Tânia

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  3. Tania, a escrita do Marcantonio é mesmo impressionante.

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