segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Cartas de lua cheia



É o extrato de um renitente romantismo que me provoca para narrar o encontro entre a índia e o homem branco. É de um gozo antecipado que me alimento. Enquadrar em moldura mítica e onírica uma história de amor, com substância de lenda. Isolar a crueldade implícita neste encontro, decorar o cenário deste amor com os elementos que até hoje constituem minha procura.
Quando descrevo os aromas que ela utilizará, para atrair o homem que está navegando mares bravios, combinação de perfeita conhecedora das ervas e das folhas e das matas, é primeiro a mim que ela fisga. Quando imagino a cena em que ela se banha nas águas do rio, aguardando o dia da sua chegada, é em minha pele que reverbera a delícia de seus hábitos.
Esqueço tudo. Desfaço as camadas de discurso. Abandono as vestes pesadas de ensinamentos de aparência razoável. Quero sair da sombra desta arena. Quero me desfazer das lições de guerra, desaprender esta cartilha bélica entre homens e mulheres.
Gosto de me imaginar prevendo o futuro. Gosto de me entender curadora das doenças do corpo e do espírito. Coloca esta mulher na margem do rio, esguia e apropriada. Sábia leitora, prevendo as alterações climáticas, adivinhando a tempestade antes que chegue. A mim, interessa muito aprender com ela o calendário regido pelas fases da lua. Esta mulher que prepara o chá e a cerimônia de toda a tribo. Elo bem desenhado entre o que há de encantado e a vida diária.
Hoje, esta mulher elabora as bebidas mágicas que irá oferecer para seu homem, que ainda não chegou. Esta mulher que sonha a viagem destemida deste homem, e que prepara o conforto para sua chegada. Ela o vê cansado, exausto. Faminto de porto, faminto de abraços. A rede que vai embalar este homem e seu corpo cansado está sendo preparada há meses. No trançado dos fios, ela deposita amor e cuidados.
Hoje, acordei desejando que esta mulher tome meu corpo e minha alma, que me leve para o reino diáfano do passado, que me ensine as artes de sacerdotisa, que me ajude a decifrar a linguagem das estrelas. Sou eu que a desejo. É minha esta ânsia de possuí-la, de encontrá-la e através dela voltar a ter fé no amor sem palavras, no amor filtrado das palavras vãs, no amor pleno, harmonizado com os ares, com os ventos e com as águas.




Originalmente publicado aqui!



4 comentários:

  1. Que história täo bonita, adorei :)

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  2. Eu, negro, silente e contornado pelas gotas do céu diluído,
    habito a noite por entre a tempestade.

    O relâmpago, grito bramido e contornado de fúria,
    desperta os seres por entre a tormenta.

    Confundimo-nos: Seu grito celeste é meu alarde divino!



    Parabéns pelos escritos!


    (comentado aqui: http://www.ocarteirodeatlantis.org/

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  3. Adoro...

    "Elo bem desenhado entre o que há de encantado e a vida diária."

    Beijos
    Leca

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  4. Eliana, que texto incrível! Estou encantada, emocionada, arrepiada. Tem muita paixão, muito desejo e muita garra.

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