sexta-feira, 30 de julho de 2010

À espera do comboio na paragem do autocarro*

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“Lá em baixo ainda anda gente
Apesar de ser tão tarde
Há quem cresça no escuro
E de dia se resguarde”

Lá em baixo, Sérgio Godinho

Finge, meu caro, finge que o mundo ainda tem alicerces ou que um risco ao contrário também encontra o seu caminho, também tem o seu lugar. Do fingir um fingimento faz tudo quanto te possa parecer de verdade, que duma palavra sem sentido tudo inclua sem se notar. Olhar pelo postigo pode ser mais difícil que bater na porta vezes sem conta, à espera do outro lado a resposta, uma silaba, um sim um não.
Não olhes o tempo que passa, olha para o tempo que foge, finge o tempo ancorado no tempo, espera o silêncio em silêncio, espera que essa palavra sem sentido se torne um sentido obrigatório, este olhar para trás fosse o momento passado sombra, fosse esse juiz que faz um inocente do seu réu, culpado; o outro lado da resposta teima aquecer os lábios, teima fingir o peito ardendo em chamas suaves enquanto chamas em silêncio essa palavra sem sentido. Acreditas, meu caro leitor, mas finges que essa resposta não te pertence, que não procuraste a pergunta, deste, desse tempo que então não passa, foge, finge um sim um não, um semáforo perdido no meio da rua, um olhar que finge ser uma pedra na mão.
Resta e dentro do que resta, do que passa, do que finge restar dum braço que se acena, dum braço que se toca devagar, duma cadeira que em silêncio desliza o chão que te afaga os pés, que escuta os teus passos, os teus braços que com os meus juntos crescem, que se soltam devagar, acredita que no teu peito todos os dias estará a refazer o teu próprio desenho, meu caro, mas não te fatigues logo com os abraços que se aceitam devagar, como que fingindo que se transformando, se transformam-se devagar; terás trabalho para uma vida inteira, porque afinal “somos sempre um pouco menos do que aquilo pensávamos e raramente um pouco mais. E como tal, finge, caro leitor, finge que ainda vives de olhos abertos e sem elos perdidos… ou não vás perder este autocarro!

... algures em 2006

|aparte: por vezes, é agradável gravar ficheiros nas pastas mais bizarras e distantes… aparecem-nos surpresas, como esta, que andei à procura durante tanto tempo, que tinha desistido… mas afinal, desde de 2006, mais coisa, menos coisa, “estacionou” numa pasta improvável na memória curta deste computador! |

.* titulo retirado de verso da canção Lá em Baixo, de Sérgio Godinho e os créditos da imagem não consegui identificar.
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2 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Estou refazendo o comentário, pq cometí um
    engano. Como estava dizendo, achei teu texto
    uma preciosidade e sentí-me uma privilegiada
    por ter a oportunidade de "saboreá-lo". Ainda bem que conseguiste localizá-lo em teu ´"baú",
    que parece esconder muitas outras jóias!!

    Um grande abraço, Leonardo

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