segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Cântico negro


 
"Escada", Marcel Duchamp




"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
  (Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
  A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí!
Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
  A ir por aí... Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...
Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
  Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou.. .
 Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
  Sei que não vou por aí!
 
 
José Régio, pseudônimo literário de José Maria dos Reis Pereira, nasceu em Vila do Conde, Portugal ( 1901-1969) Romancista, dramaturgo, ensaísta e crítico, foi, no entanto, como poeta. que primeiramente se impôs. Com o livro de estréia — "Poemas de Deus e do Diabo" (1925) — apresentou quase todo o elenco dos temas que viria a desenvolver nas obras posteriores: os conflitos entre Deus e o Homem, o espírito e a carne, o indivíduo e a sociedade, a consciência da frustração de todo o amor humano, o orgulhoso recurso à solidão, a problemática da sinceridade e do logro perante os outros e perante a si mesmos.

4 comentários:

  1. Este poema, Ci, ganha mais ainda em dramaticidade lido por Maria Bethania em um dos seus discos mais antigos. Quem sabe, Rosa dos Ventos. Já não lembro.
    Estou sempre aqui aplaudindo as suas escolhas. Neste caso, vou por aí.
    beijo,

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    1. Não conheço a leitura feita por Bethânia, não me lembro
      de tê-lo ouvido no Rosa dos Ventos. De qq forma acho-o
      de uma lucidez fantástica, coisa que me parece, foi-se
      por aí, a lucidez :)

      beijo

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    2. Não tenho certeza de que esteja em Rosa dos Ventos. Mas pode procurar no acervo de Bethania, com direção de Fauzi Arap. Será assim que se escreve?.
      :)beijo

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    3. Tentarei, José Carlos, obrigada pela dica, e é assim mesmo que se escreve, viu?

      beijo :)

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