domingo, 28 de abril de 2013

Caetano Veloso, Leminski!






Leminski!

O fenômeno Leminski e os encontros com o poeta que sempre atraiu jovens leitores

Vim de Petrolina para Porto Alegre com uma escala prolongada em Salvador e outra relâmpago no Rio. Daqui sigo para Belo Horizonte. Estou em aeroportos e hotéis, além de palcos, quase o tempo todo. Mas uma conversa rápida com Jorge Furtado aqui na quinta à noite me pôs um pensamento na cabeça que é muito apaixonante. Ele me disse que o livro de poesias reunidas de Leminski está entre os mais vendidos. Na verdade, ele afirmou que esse livro chegou a passar à frente do mais vendido das listas. Ouvir dizer que um livro de poemas está vendendo assim no Brasil é escândalo. Tínhamos aprendido que poesia não vende. Exceto talvez na Rússia. No Brasil então… Mas Leminski!... Fico pensando no significado desse fenômeno, mas sobretudo me vêm as lembranças dos encontros com o poeta. Saber disso aqui no Sul do país torna tudo mais vívido.
A primeira vez em que estive com Leminski foi em sua Curitiba natal. Aliás, por muito tempo eu o encontrava lá. Ele vivia com Alice Ruiz numa casa de madeira sem aquecimento. Eu aguentava o frio das altas horas depois dos shows empacotado em casacos grossos, camisetas sob as camisas de manga comprida, ceroulas, meias de lã e, às vezes, luvas. Acho que já não bebia nada. Ou talvez ainda bebesse um pouco nas primeiras vezes. Leminski bebia muito. Mas o que aquecia o ambiente eram suas palavras, seus olhares de profundo carinho desconfiado, sua risada rouca e o milagre de algumas canções que ele compunha com parcos acordes de violão. A primeira vez que ouvi “Verdura” (“De repente me lembro do verde/ A cor verde, a mais verde que existe/ A cor mais alegre, a cor mais triste/ O verde que vestes, o verde que vestiste/ No dia em que te vi, no dia em que me viste./ De repente vendi meus filhos/ A uma família americana/ Eles têm carro, eles têm grana/ Eles têm casa e a grama é bacana/ Só assim eles podem voltar e tomar um sol em Copacabana”) senti a força da poesia a um tempo como piada e fundo lamento virando canção caipira urbana. Resolvi gravá-la — e até hoje, se me lembro dela, me dá um nó na garganta. Mas era muito mais intenso e muito mais bonito ouvi-la cantada pelo autor numa casa de madeira sem lareira.
Leminski foi um menino prodígio do concretismo (os concretos o publicaram na revista “Invenção”, depois de um encontro literário em Belo Horizonte onde Haroldo de Campos o conheceu, ele ainda adolescente), entusiasta dos beatniks, personagem autoirônico da contracultura. Ele lutava caratê. Tinha uma cara de Europa Oriental. Mais oriental do que Europa. Tinha lido muito e continuava lendo muito. Era culto e apaixonado pelas letras. Creio que quando o conheci ele estava escrevendo o “Catatau”, uma aventura literária joyciana em que Descartes vem com Maurício de Nassau (coisa que poderia ter acontecido) para Pernambuco e entra em contato com a luz dos trópicos, os bichos e árvores exóticos — e os psicotrópicos naturais. Ele o tinha como a obra central de sua vida literária. Desde a escolha do título até o modo como ele se referia ao livro, sentia-se que ele o via fisicamente maior do que era. Esta é uma observação curiosa, meio maluca. Mas é o que sempre me vinha à cabeça. O tamanho do objeto “Catatau” parecia desmentir a imagem que Leminski tinha na cabeça quando se referia a ele. Sua força literária é outra história. Leminski gostava de repetir que um criador tem apenas uma ideia — e que a dele tinha sido o “Catatau”, Descartes no Brasil e a subversão da lógica cartesiana. As primeiras páginas empolgam pela inventividade vocabular e pelo sentido de ritmo. É um livro que, depois de ler as poesias reunidas, que são outra onda, preciso voltar a ler. Preciso também assistir ao filme “Ex-isto” (grande título!), em que João Miguel faz Descartes.
Depois, um tanto decepcionado com o destino do “Catatau”, Leminski escreveu um romance mais convencional, chamado “Agora é que são elas”, sobre o qual conversei muito com Boris Schneiderman, ficando com a impressão de que esse grande tradutor e eu éramos os únicos a admirar essa incursão do poeta curitibano pela prosa propriamente narrativa e pela fabulação tipo novela policial.
Mas a poesia! Leminski sempre atraiu jovens leitores para a poesia. Jovens de várias gerações. Reunida, sua obra poética parece ter juntado toda essa vontade de poesia que estava enrustida há décadas. Nem quero falar sobre os versos, os poemas curtos, os hai-kais, o tom de eterna circunstância de suas tiradas poéticas. Só depois de reler tudo junto e misturado. Por ora, basta celebrar a virada de jogo que representa essa boa nova. Que poesia volte a vender livros no Brasil é uma revolução. Que esta esteja sendo feita por Leminski é sinal de que ela é profunda.



Bi Kidude (1910-2013)






A cantora zanzibariana Bi Kidude, a lenda do Taarab, música tradicional do arquipélago tanzaniano de Zanzibar e das ilhas e costas do Oceano Indiano, faleceu hoje (17/4) no seu domicílio, anunciou o seu sobrinho à AFP.

"Ela faleceu, estamos em vias de organizar os funerais", disse Baraka Abdullah, explicando que a sua tia, presumida centenária, estava, há vários meses doente e vivia em sua casa numa aldeia próxima da cidade de Zanzibar.

Bi Kidude, que nasceu em 1910, cujo verdadeiro nome era Fatuma binti Baraka, começara a cantar nos anos 1920 e era considera como a rainha da música taarab.

Derivada da música árabe clássica - levada entre finais do século XIX e início do século XX para Zanzibar pelos sultãos árabes - e enriquecido por influências africanas e swahilis, o taarab enraizou-se nas costas quenianas e tanzanianas, também no arquipélago das Comores.

Bi Kidude, de visão rígida sobre uma boa silhueta e voz alta, dispensava uma energia abudante em cena, tocando um tambor largo inserida entre as suas pernas, tirando intervalos regulares para fumar um cigarro ou tomando um um bocado de bebidas alcóolicas.

Em 2005, ela recebeu o prestigiado prémio World Music Expo (Womex) pela sua contribuição extraordinária à música e a cultura de Zanzibar, ilha autónoma, cuja população e a cultura são profudamente marcadas pela mestiçagem entre África, mundo árabe e resto do oceano Indiano.

(Fonte:Angola Press, em http://www.portalangop.co.ao/)


sexta-feira, 26 de abril de 2013

Bípede falante e o táxi


              
      Depois de descer do táxi e se surpreender com o azul sem nuvens da cidade até então encoberta pelo cansaço de seus olhos e de decidir parar em vez de entrar no prédio - despedaçado como um homem moderno, cobiçado por incorporadoras alheias à solidez de sua história e às das famílias que nele testemunharam as vidas umas das outras em encontros involuntários pelos corredores, no elevador e na garagem, incorporadoras alheias às noites passadas em claro por mães com bebês de colo, surdas ao choro da velhinha eterna sempre a chamar pela mãe morta há anos e indiferentes às rachaduras das mãos de um jardineiro de nome impronunciável, tratado, portanto, de senhor jardineiro como se fosse invisível ou insignificante - depois de descer do táxi, fechando o botão do terno, ele recua alguns passos e lembra da aliança esquecida sobre a mesa de cabeceira de um quarto que não cheirava a alecrim e em que não flutuaram os passos e não ecoaram os batimentos do coração dela, ela sempre organizando a casa, a despensa, as roupas, ela enchendo os vasos com flores, transferindo o leite das caixas para garrafas, lendo notícias, poemas, trechos em voz alta, ela experimentando vestidos antes de fazer uma mala, exibindo a sua cintura fina e as coxas firmes apesar dos filhos,  perguntando a ele o que acha, se está bonita, se não vai passar frio, calor, etc.,  depois de descer do táxi, só depois de descer do táxi, ele entende o quanto a amava já naquela época e o quanto, agora, será inútil dizer tudo isso a ela.

quarta-feira, 24 de abril de 2013

Ódio e preconceito: França vive primavera sombria


 
 

A França vive uma primavera sombria. A extrema direita, os grupos ultra católicos e a oposição conservadora montaram um show de homofobia latente que chegou até as agressões físicas contra os homossexuais e passou o limite da intimidação com uma carta de ameaças cheia de pólvora enviada ao presidente da Assembleia Nacional, Claude Batolomé. A lei sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo deve ser aprovada definitivamente nesta terça-feira na Assembleia Nacional. No entanto, o projeto acendeu um foco de tensão violento, com manifestações massivas a favor e contra o texto, ameaças aos deputados que o defendem, destruição de locais, golpes e insultos aos homossexuais e uma infinidade de episódios de uma vulgaridade de comédia barata. O país que desenhou os conceitos de Direitos Humanos e onde as liberdades cívicas são um exemplo universal se meteu no labirinto das fobias: à islamofobia e ao racismo que marcaram a campanha eleitoral para as eleições presidenciais de abril e maio passado se seguiu uma homofobia agressiva que fez várias vítimas e colocou em primeiro plano pequenos grupos fanáticos que, oriundos de várias correntes da direita, confluíram em uma frente comum de perigosas intenções. A chamada lei sobre “o matrimônio para todos” proposta pelo Executivo socialista destampou a existência de uma França iracunda e intolerante até a intimidação física. Há uns dez dias, um jovem casal franco-holandês de homossexuais, Olivier e Wilfred de Bruijn, foi atacado no distrito XIX de Paris por um grupo de cinco jovens, que os agrediu brutalmente. “Olha, são homossexuais”, disse um deles e imediatamente começaram a agredi-los. A foto de Wilfred de Brujin com a cara desfigurada pelos golpes deu a volta ao mundo: ele mesmo fez com que ela circulasse na internet. De Brujin está certo de que a surra que levou é uma consequência da radicalização que a lei provocou: “Desde o verão passado, o clima se tornou odioso para os homossexuais na França. Nos sentimos atacados, ameaçados, insultados. O debate deixou livre uma violência verbal e física que antes parecia contida. A culpa é dos bispos da Igreja católica e de políticos como Jean-François Copé”. Este político é hoje o líder do principal partido de oposição, a UMP, que aproveitou o antagonismo que levantou a lei sobre o matrimônio igualitário para atacar o governo e recuperar a credibilidade de um partido que vinha perdendo velocidade. Mas a agressão dos homossexuais parisienses não foi a única: nas localidades de Lille e Bordeaux ocorreram novos ataques contra os homossexuais. A França voltou à Idade Média no que diz respeito a este tema. A tensão é tal que a polícia reforçou sua presença nos bairros frequentados pelos homossexuais para evitar a repetição das agressões. No início, apesar das dezenas de milhares de pessoas que os adversários da lei reuniam nas manifestações ninguém captou a importância que essa corrente iria tomar. O movimento contra a lei está composto por um leque de grupos que vão desde os fundamentalistas católicos de Civitas, bispos e padres de corte conservador, deputados ou prefeitos da oposição conservadora, núcleos de neonazistas, membros do grupo terrorista que se opôs à independência da Argélia, a OAS, militantes e quadros do partido de extrema direita Frente Nacional, nostálgicos da monarquia da Ação Francesa, pequenos grupelhos xenófobos das Juventudes Nacionalistas, neonazistas do Bloco Identitário e um monte de famílias que veem a lei como uma ameaça à civilização ocidental. Toda essa torrente está liderada por uma mulher, Frigide Barjot, uma ex-comediante e cronista mundana que se veste toda de rosa como um incongruente prato de confeitaria. A denominada Frigide teve seu caminho de Damasco em 2004, quando realizou uma peregrinação até a Virgem de Lourdes e se tornou uma fervorosa católica. Frigide Barjot se auto-considera como “a porta voz de Jesus”. A líder deste bando intimidador considera que vive sob “uma ditadura” e, dirigindo-se ao presidente socialista François Hollande, disse certa vez: “Hollande quer sangue, e o terá”. Como a lei também contempla a possibilidade de que duas pessoas do mesmo sexo possam adotar filhos, seus opositores se apoiam nesse capítulo para negar toda forma de homofobia: “nos preocupa que as crianças sejam educadas por dois pais ou duas mães”, disse Frigide. A carta cheia de pólvora enviada ao presidente da Assembleia Nacional tem o mesmo corte explícito. “Nossos métodos são mais radicais e expeditivos que as manifestações. Vocês quiseram a guerra, pois aí está ela”. Mais adiante, o texto diz: “o matrimônio para todos equivale à supressão total do matrimônio. No caso de você ficar omisso diante desse ultimato, sua família política sofrerá fisicamente”. O debate ultrapassou em muito o tema de lei e se tornou hoje uma clara mostra de descontentamento político contra François Hollande. No início das manifestações, os cartazes eram contra o texto, mas com o passar das semanas e das marchas cada vez mais massivas – chegando a reunir até 300 mil pessoas – o protesto se focalizou nos socialistas: hoje se veem muitas faixas pintadas que dizem “Hollande demissão”. Outra afirma: “Hollande, não queremos tua lei sobre casamento homossexual, queremos trabalho”. Estes meses de debates, insultos, violência, missas ao ar livre e pessoas de joelhos na porta da Assembleia Nacional, frases arrebatadas e excitadas na televisão terminaram por fazer dos homossexuais um demônio perigoso, uma espécie de elemento tóxico da sociedade. A direita conseguiu com eles o mesmo que fez com os estrangeiros: transformá-los em um sinônimo de coisa nociva. O resultado é dramático para os homossexuais e as lésbicas mais jovens, com escassa experiência na discriminação. Agora, têm medo de serem reconhecidos e de serem agredidos por sua sexualidade. Em nome da integridade da família e da educação dos filhos por casais tradicionais, os bispos e padres que movem os fios de ódio por baixo de suas batinas terminaram por transtornar o perfil de um país exemplar. Em vez da concórdia promoveram a intolerância e a divisão. Com isso ressuscitaram e uniram em um mesmo rechaço a todos os ramos dos extremos. Os protagonistas dessa primavera sombria francesa sonham com uma espécie de maio de 68 ao contrário, ou seja, ao invés de uma revolução libertadora dos costumes, uma revolução conservadora que volte a colocar a mordaça na sociedade.
 
 
Eduardo Febbro, de Paris, em www.cartamaior.com.br
 
Tradução: Katarina Peixoto
 

Boca da noite

 
 
 

  A voz, na boca da noite,
trabalha na solidão
e abriga as formas do dizer.
 
Na boca da noite,a voz incendeia
 o silêncio de Ulisses,
onde dormem as águas do ser
 
 
José Inácio Vieira de Melo, em Pedra Só.

domingo, 21 de abril de 2013

Cais



Foi viva aquela saudade
barco sem nome
destino nem
hora de partir.

Viveu o tempo de um cais
aberto a todos os mares.

 

sábado, 20 de abril de 2013

De arrasar! Não perca...

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sexta-feira, 19 de abril de 2013

De Ana Rüsche

Poética
 
escrever é um ato necessário de perda
: ou você perde,
: ou você se perde.
o resto são vitórias para colecionadores de palavras.
 
 
 
Anoréxicas
 
 
Emagrecer,
estirpar a última palavra,
devolver as costelas emprestadas
e desintegrar-se em luz.


quarta-feira, 17 de abril de 2013

O Tempo

 O tempo é qualquer coisa que representa tudo ou nada.
O tempo é a vida e morte.
Quando vida é uma sucessão de acontecimentos,
de luzes e sombras, de ruido e silêncio.
 Quando morte é só silêncio.
 
E, por absurdo que pareça,
no silêncio completo, total, absoluto,
 o tempo passa mais rapidamente
 do que nas horas trepidantes de vida.
Porque na vida, ele se escoa e na morte se desfaz.
 
 
Emi Bulhões Carvalho da Fonseca, romancista e contista carioca.

domingo, 14 de abril de 2013

O poema

 
Que será o poema, essa estranha trama
de penumbra e flama que a boca blasfema?
Que será, se há lama no que escreve a pena
ou lhe aflora à cena o excesso de um drama?
 
Que será o poema:
  uma voz que clama?
Uma luz que emana?
Ou a dor que algema?
 
 
Ivan Junqueira,  em  A Sagração dos Ossos

quarta-feira, 10 de abril de 2013

Acima de qualquer suspeita

a poesia está morta
mas juro que não fui eu
eu até que tentei fazer o melhor que podia para salvá-la
imitei diligentemente augusto dos anjos paulo torres carlos
drummond de andrade manuel bandeira murilo mendes
vladimir maiakóvski joão cabral de melo neto paul éluard
oswald de andrade guillaume appolinaire sosígenes costa
bertolt brecht augusto de campos
não adiantou nada
em desespero de causa cheguei a imitar um certo (ou incerto)
josé paulo paes poeta de ribeirãozinho estrada de ferro
araraquarense
porém ribeirãozinho mudou de nome a estrada de ferro arara-
quarense foi extinta e josé paulo paes parece nunca ter
existido
sem eu
 
 
José Paulo Paes

terça-feira, 9 de abril de 2013

Sem o brilho da loucura no olhar





Dona Verde era uma senhora com problemas mentais que perambulava pelas ruas de minha infância no interior da Bahia. Tudo o que encontrava pendurava em seu corpo: latas, folhas, brinquedo quebrado, aros e qualquer cacareco que lhe aparecesse pela frente. Não era apenas mais uma entre os loucos folclóricos da cidade, porque todas as festas, desfiles, eventos de rua que aconteciam traziam Dona Verde dançando na frente. Parecia uma árvore andante, já que o verde predominava. O mau cheiro era enorme, pois, além de não tomar banho, havia materiais em decomposição pendurados em seu corpo, até a cabeça.

Um dia, uma alma caridosa levou Dona Verde para o sanatório, fizeram lá um tratamento e ela, enfim, voltou a morar numa casa, onde fui, juntamente com outras crianças, visitá-la. Dona Verde estava limpinha, vestida dignamente, conversou e não lembro se ofereceu café ou qualquer coisa assim. Lembro, isso sim, do meu desencanto. Eu sei, havia alguma coisa errada naquilo que eu sentia, deveria ficar alegre em ver Dona Verde bem, quieta e serena em sua casa. Como uma pessoa normal. Mas meu peito apertou. Nunca mais eu veria Dona Verde abrindo os desfiles de Sete de Setembro com a sua dança e penduricalhos. Nunca mais eu veria aquela mulher que parecia uma figura supra-humana a verdejar pelas ruas da cidade. Estranhamente, embora “sã”, eu sentia que Dona Verde voltara faltando um pedaço. Não estou me referindo apenas aos balangandãs que carregava. Refiro-me a algo no olhar, um brilho – talvez o brilho da loucura – que já não havia nos olhos daquela mulher. Normal e opaca. Senti-me culpada de pensar aquelas coisas, sabia que deveria estar contente em vê-la bem, cuidada e limpinha. Voltei pra casa pensativa, silenciosa, estranha, culpada.

Pouco tempo depois, encontrei Dona Verde andando e dançando nas ruas com seus penduricalhos novamente.  Não eram tantos quanto antes, mas era certo que voltariam a ser. Fiquei feliz. Tudo muito confuso na minha cabeça de criança. Uma felicidade que eu não saberia explicar e que guardava comigo, para não ser julgada má.

Hoje eu entendo que não era maldade minha querer ver Dona Verde desfilando doida pelas ruas. Eu gostava da originalidade dela. Da dança. Da irreverência ensandecida. E eu não fiquei triste por vê-la “curada” provisoriamente. Estranhava aquela lucidez sem brilho, uma lucidez entristecida, dopada, sem alma. Deveria haver um jeito de fazer Dona Verde “voltar” sem tirar-lhe o seu melhor pedaço – talvez fosse isso que eu sentisse e não sabia traduzir na minha imaturidade.

Lembro muito dos loucos da minha infância. Naquele tempo, numa cidade pequena, eram tratados com dignidade.  Hoje, certamente, Dona Verde poderia “voltar pra casa” com o pedaço que tiraram dela no sanatório para loucos. E dançaria, criaria muita coisa, faria arte e continuaria a alegrar infâncias.

domingo, 7 de abril de 2013

 
O olho que te vê
não é olho porque tu o vês.
É olho porque te vê.
 
 
Antonio Machado

sábado, 6 de abril de 2013

Ana Angélica




Fala de tanta coisa ao mesmo tempo que no fim não sobra nada.
Ana Angélica, um nome assim tipo arrebatador. Não que ela faça o gênero – um pouco tosquinha, simpática e boa pessoa. Impossível é seguir o fio de seus pensamentos ou manter uma conversa coerente que dure mais de três minutos. O pensamento de Ana Angélica é como um tobogã transparente por onde deslizam incontáveis pedaços de assunto, nomes que não se sabe de onde vêm, lembranças e sensações mal definidas, misturadas como meadas de várias cores. Ana Angélica não conta uma história, conta várias ao mesmo tempo, e no fim é preciso fazer múltipla escolha entre os trechos de enredo e os finais. Por qualquer motivo ela ri, ri muito, o que torna suas falas uma colagem de palavras incompletas mas coloridas.
Não, não é doida nem passa perto disso. É alegre e adora se divertir. Ninguém a encontra em casa nas noites de sexta ou a qualquer hora nos sábados, sendo que aos domingos vai à missa – diz que se faltar à missa alguma coisa muito ruim sempre acontece durante a semana – e dali parte para a praia se não chover. Depois almoça um churrasco em casa de amigos ou amigos de amigos, toma todas que aparecerem e vai dormir cedo porque segunda é dia de voltar ao posto de recepcionista de uma clínica de estética na Barra.
Tem um círculo de amizades surpreendentemente grande, variado e flutuante. Tem orkut, adora sexo na internet e faz questão de espalhar suas fotos em todos os sites de relacionamento. Já fez dois abortos, porque diz que só quer filhos depois dos trinta e cinco e ainda tem vinte e oito. Fica, namora, sai sempre com alguém, faz qualquer coisa para não ficar sozinha, mas nunca demora mais de quinze dias com o mesmo cara.
Acredito que isso acontece porque uma vez passou uns meses com um sujeito que a trocou por outra e fez de seu coração risonho uma gruta escura. Caiu em depressão, parou de comer, quase morreu sozinha em seu canto. Os amigos a salvaram do desespero, mas depois do luto, voltou à rotina de variedades que a mantém sempre com o olhar brilhando e os dentes bonitos de fora.
Ana Angélica não quer servir de exemplo pra ninguém. Não se responsabiliza, e como tem o coração fácil de derreter, chora com facilidade, mas logo se distrai e esquece. Vive cada momento, não pensa no futuro nem pára em lugar nenhum do passado. Alguém já disse que ela é como espuma, sempre efervescente e renovada. Ana Angélica se especializou em esquecer.


Erra uma vez

 
Nunca cometo o mesmo erro
duas vezes
já cometo duas três
quatro cinco seis
até esse erro aprender
que só o erro tem vez.
 
 
Paulo Leminski, em La vie en close

quarta-feira, 3 de abril de 2013

A metáfora da autoestima


 

A águia e a galinha
 
 

Era uma vez um camponês que foi à floresta vizinha apanhar um pássaro para mantê-lo em sua casa. Conseguiu pegar um filhote de águia. Colocou-o no galinheiro junto com as galinhas. Comia milho e ração própria para galinhas. Embora a águia fosse o rei / rainha de todos os pássaros. Depois de cinco anos, este homem recebeu a visita de um naturalista. Enquanto passeavam pelo jardim, disse o naturalista:
– Este pássaro aí não é uma galinha. É uma águia
. – De fato, – disse o camponês. É águia. Mas eu a criei como galinha. Ela não é mais uma águia. Transformou-se em galinha como as outras, apesar das asas de quase três metros de extensão.
– Não – retrucou o naturalista. Ela é e será sempre uma águia. Pois tem um coração de águia. Este coração a fará um dia voar às alturas.
– Não, não – insistiu o camponês. Ela virou galinha e jamais voará como águia.
Então decidiram fazer uma prova. O naturalista tomou a águia, ergueu-a bem alto e desafiando-a disse:
– Já que de fato você é uma águia, já que você pertence ao céu e não à terra, então abra suas asas e voe!
A águia pousou sobre o braço estendido do naturalista. Olhava distraidamente ao redor. Viu as galinhas lá embaixo, ciscando grãos. E pulou para junto delas. O camponês comentou:
– Eu lhe disse, ela virou uma simples galinha!
– Não – tornou a insistir o naturalista. Ela é uma águia. E uma águia será sempre uma águia. Vamos experimentar novamente amanhã.
No dia seguinte, o naturalista subiu com a águia no teto da casa. Sussurrou:
– Águia, já que você é uma águia, abra suas asas e voe!
Mas quando a águia viu lá embaixo as galinhas, ciscando o chão, pulou e foi para junto delas. O camponês sorriu e voltou à carga:
– Eu lhe havia dito, ela virou galinha!
– Não – respondeu firmemente o naturalista. Ela é águia, possuirá sempre um coração de águia. Vamos experimentar ainda uma última vez. Amanhã a farei voar. No dia seguinte, o naturalista e o camponês levantaram bem cedo. Pegaram a águia, levaram-na para fora da cidade, longe das casas dos homens, no alto de uma montanha. O sol nascente dourava os picos das montanhas. O naturalista ergueu a águia para o alto e ordenou-lhe:
– Águia, já que você é uma águia, já que você pertence ao céu e não à terra, abra as suas asas e voe! A águia olhou ao redor. Tremia como se experimentasse nova vida. Mas não voou. Então o naturalista segurou-a firmemente, bem na direção do sol, para que seus olhos pudessem encher-se da claridade solar e da vastidão do horizonte. Nesse momento, ela abriu suas potentes asas, grasnou com o típico kau-kau das águias e ergueu-se soberana, sobre si mesma. E começou a voar, a voar para o alto, a voar cada vez para mais alto. Voou… voou… até confundir-se com o azul do firmamento…

Mark Twain,  Flórida, Missouri (1835-1910) 

Do Lavoura


E eu vi de repente seus olhos molharem, e foi então que ele me abraçou, e eu senti nos seus braços o peso dos braços encharcados da família inteira"

Lavoura arcaica


Dois poemas de Qorpo Santo






 
AS ARANHAS
 
 
Tão lindas as aranhas
Tão belas, tão ternas
Pois caem do teto
E não quebram as pernas!
 
 
UMAS PERNAS
 
 
Eu não cei aonde vi
Umas pernas, a um sagui.
As quaes eram, tão bem feitas,
Que por certo, satisfeitas.
Ficariam as estrelas,
Se as podessem ter tão belas!


Qorpo Santo, ou José Joaquim de Campos Leão, nasceu em Triunfo(RS), em 1829 e faleceu em Porto Alegre em 1883. Poeta, dramaturgo e pesquisador da linguagem.

segunda-feira, 1 de abril de 2013

Atenção


Mais Iacyr Anderson Freitas

    ELEGIA

                Iacyr Anderson Freitas

    o inverno quer ficar contigo
    nesse jardim
    onde um velho dorme.
    ainda não são seis horas
    e a nuvem
    que agora te acusava
    some no azul, desfeita
    por teu brilho
    que envelhece,
                     é certo,
    sem o alarde
    dos ventos mesmos
    de outrora.
    o que procura estar contigo
    não te envolve:
    espera, agudo, nesse jardim
    inaugural
             entre formigas,
    jornais
          e o que resta de setembro.
    vives uma infância transitória
    e teus cabelos cingem,
    na cintura, o esboço
    de um adeus
    que a tua própria ausência configura. 

Maria Maria!