Dona Verde era
uma senhora com problemas mentais que perambulava pelas ruas de minha infância
no interior da Bahia. Tudo o que encontrava pendurava em seu corpo: latas,
folhas, brinquedo quebrado, aros e qualquer cacareco que lhe aparecesse pela
frente. Não era apenas mais uma entre os loucos folclóricos da cidade, porque
todas as festas, desfiles, eventos de rua que aconteciam traziam Dona Verde
dançando na frente. Parecia uma árvore andante, já que o verde predominava. O mau cheiro era enorme, pois, além de não tomar banho,
havia materiais em decomposição pendurados em seu corpo, até a cabeça.
Um dia, uma alma
caridosa levou Dona Verde para o sanatório, fizeram lá um tratamento e ela,
enfim, voltou a morar numa casa, onde fui, juntamente com outras crianças,
visitá-la. Dona Verde estava limpinha, vestida dignamente, conversou e não
lembro se ofereceu café ou qualquer coisa assim. Lembro, isso sim, do meu
desencanto. Eu sei, havia alguma coisa errada naquilo que eu sentia, deveria ficar
alegre em ver Dona Verde bem, quieta e serena em sua casa. Como uma pessoa
normal. Mas meu peito apertou. Nunca mais eu veria Dona Verde abrindo os
desfiles de Sete de Setembro com a sua dança e penduricalhos. Nunca mais eu veria
aquela mulher que parecia uma figura supra-humana a verdejar pelas ruas da
cidade. Estranhamente, embora “sã”, eu sentia que Dona Verde voltara faltando
um pedaço. Não estou me referindo apenas aos balangandãs que carregava. Refiro-me
a algo no olhar, um brilho – talvez o brilho da loucura – que já não havia nos
olhos daquela mulher. Normal e opaca. Senti-me culpada de pensar aquelas
coisas, sabia que deveria estar contente em vê-la bem, cuidada e limpinha.
Voltei pra casa pensativa, silenciosa, estranha, culpada.
Pouco tempo
depois, encontrei Dona Verde andando e dançando nas ruas com seus penduricalhos
novamente. Não eram tantos quanto antes,
mas era certo que voltariam a ser. Fiquei feliz. Tudo muito confuso na minha
cabeça de criança. Uma felicidade que eu não saberia explicar e que guardava
comigo, para não ser julgada má.
Hoje eu entendo
que não era maldade minha querer ver Dona Verde desfilando doida pelas ruas. Eu
gostava da originalidade dela. Da dança. Da irreverência ensandecida. E eu não
fiquei triste por vê-la “curada” provisoriamente. Estranhava aquela lucidez sem
brilho, uma lucidez entristecida, dopada, sem alma. Deveria haver um jeito de
fazer Dona Verde “voltar” sem tirar-lhe o seu melhor pedaço – talvez fosse isso
que eu sentisse e não sabia traduzir na minha imaturidade.
Lembro muito dos
loucos da minha infância. Naquele tempo, numa cidade pequena, eram tratados com
dignidade. Hoje, certamente, Dona Verde
poderia “voltar pra casa” com o pedaço que tiraram dela no sanatório para
loucos. E dançaria, criaria muita coisa, faria arte e continuaria a alegrar infâncias.
Lindo texto Tania.
ResponderExcluirComo convivemos com tantos seres sem brilho por aí!
E não vejo como maldade o seu desejo infantil, mas que graças a esta visão (desvalorada) conseguia enxergar a real Dona Verde, e não a que queriam que ela fosse!
Beijos e_ternos
Placco, hoje é fácil entender que não havia "cura" naquilo que chamavam de cura. Quando criança, isso era intraduzível. Obrigada pela leitura.
ExcluirBeijos,
Os loucos de hoje matam, estupram como se fossem "normais"!!
ResponderExcluirPois é, Ci, quem tanta gente boa em sanatórios para loucos e tantos loucos no poder!
Excluirbeijos,
carrego um tanto bom dos loucos da minha infância.
ResponderExcluiro andarilho Bom Cabelo, germana, a mulher que tinha um filho todos os anos (filhos de outros loucos) e que também perambulava, Rita que atirava pedras... Serapião, que corria com os soldados...
carrego os loucos da minha infância nos meus medos e na minha loucura, também.
já dizia caetano: de perto, ninguém é normal.
belo texto, taninha.
Fica mesmo, Beto. Tenho todos eles dentro de mim.
ExcluirBeijos, maninho!