sábado, 4 de setembro de 2010

E se agora, não depois?

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Se agora saíssemos pela manhã, esquecidos de nós, desfazendo as malas carregadas de memórias, arrumando os livros que trazemos guardados há uma vida, esquecendo as notas de todas as canções de amor, se agora saíssemos por aí, sem direcção, sem mapa dos itinerários principais dos dias que passaram, sem chave da casa, sem dinheiro no bolso, sem anotações sem importância num caderno esquecido, se agora trocássemos de roupa e de pele, sem pudor, sem sentido, se agora gravássemos numa arvore centenária amor como te amo e amarei, sem um único lápis ou canivete, desfazendo os baús que guardam de nós as águas passadas, as que nunca moverão os nossos moinhos, se agora te beijasse, se agora me beijasses, se agora dançássemos nesta manhã, colorida manhã, rodopiando nas ruas, interrompendo o trânsito urgente, passando entre os rostos carregados dum dia novo tão velho, tão igual a todos os dias do mundo, se agora nesta manhã declarássemos a urgência de amar, um alerta máximo, único, estado de alerta errante, declarando as mais estúpidas canções de amor o nosso hino nacional, universal, se agora descemos as escadas da nossa casa sem sol, sem sombra, sem chaves nem estantes por arrumar os estorvos da memória, tudo o que acumulamos pelo fio dos anos, as riquezas e misérias dos objectos que acumulamos pelo fio dos anos, se agora sem rumo certo assobiássemos uma canção trivial, uma canção de amor inventada agora mesmo, e depois? Era só uma canção, sem nada mais, sem nada menos, apenas esquecidos de nós sem as sombras do dia que passou, dos dias que vão longe, dos dias que passarão.

Se agora saíssemos pela manhã, já esquecida da sua madrugada, por essa rua que não vai dar a lado nenhum, por esse caminho sem destino, rumo ao nosso coração, outrora um país distante, rumo á finita incerteza da mudança, e se agora e se depois tomássemos nas mãos esse cálice de terra que não se chama vida nem morte, nem serena nem agita a placidez do silêncio, nem murmura os segredos de quem por nada tem muito por contar, da beleza que só os olhos sem cansaço são capazes de reter, e se agora e se depois? Era só mais uma palavra, uma sombra, um gesto, um signo ou um sinal, era só mais uma manhã, tarde não nunca, tardios são os sorrisos guardados, são os lábios que não se prenunciam, tardios são olhos que jamais choraram, tarde não nunca se agora corrermos pela manhã nova, irmã distante de todas as que a antecederam, se agora “as palavras fazem-nos crer que os sonhos formam parte das coisas e as coisas de sonhos” , se agora nos encontramos num banco de jardim, num jardim abandonado, num abandono feliz, felizes as canções e os beijos que trocamos, como se agora o mundo acabasse sem darmos conta que não haverá outra noite, outra madrugada.

E se agora, não depois?



23 de Março de 2004


|imagem reprodução de imagem de instalação Blind Light, Antony Gormley|
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4 comentários:

  1. Adorei o texto, viver um agora sem correntes que prendam ao antes, sem a urgência do depois.

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  2. Oi, . Saudações Literárias
    Voltei e continuo gostando.

    Abraços de luz.

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  3. Leonardo meu lindo, se agora não houvesse divisas, cercas, muros, e todo Universo fosse único parido por uma só Mãe gentil Pátria. Ah que bom seria, se agora encontrássemos: “... irmã distante de todas as que a antecederam, se agora “as palavras fazem-nos crer que os sonhos formam parte das coisas e as coisas de sonhos”, se agora nos encontramos num banco de felizes as canções e os beijos que trocamos jardim... sem mapa dos itinerários principais... ”Lindo entrelaçar das suas palavras com o hino. Bravo e Amém!
    Com carinho,
    Sílvia

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