domingo, 6 de novembro de 2011

O belo de Sophia de Mello Breyner Andresen




"A coisa mais antiga de que me lembro é dum quarto em frente do mar dentro do qual estava, poisada em cima de uma mesa, uma maçã enorme e vermelha. Do brilho do mar e do vermelho da maçã erguia-se uma felicidade irrecusável, nua e inteira. Não era nada de fantástico, não era nada de imaginário: era a própria presença do real que eu descobria. Mais tarde a obra de outros artistas veio confirmar a objectividade do meu próprio olhar. Em Homero reconheci essa felicidade nua e inteira, esse esplendor da presença das coisas. E também a reconheci intensa, atenta e acesa na pintura de Amadeo de Souza-Cardoso. Dizer que a obra de arte faz parte da cultura é uma coisa um pouco escolar e artificial. A obra de arte faz parte do real e é destino, realização, salvação e vida.


Sempre a poesia foi para mim uma perseguição do real. Um poema foi sempre um círculo traçado à roda duma coisa, um círculo onde o pássaro do real fica preso. E se a minha poesia, tendo partido do ar, do amor e da luz, evoluiu, evoluiu sempre dentro dessa busca atenta. Quem procura uma relação justa com a pedra, com a árvore, com o rio, é necessariamente levado, pelo espírito de verdade que o anima, a procurar uma relação justa com o homem. Aquele que vê o espantoso esplendor do mundo é logicamente levado a ver o espantoso sofrimento do mundo. Aquele que vê o fenómeno quer ver todo o fenómeno. É apenas uma questão de atenção, de sequência e de rigor. 


E é por isso que a poesia é uma moral. E é por isso que o poeta é levado a buscar a justiça pela própria natureza da sua poesia. E a busca da justiça é desde sempre uma coordenada fundamental de toda a obra poética. Vemos que no teatro grego o tema da justiça é a própria respiração das palavras. Diz o coro de Esquilo: "Nenhuma muralha defenderá aquele que, embriagado com a sua riqueza, derruba o altar sagrado da justiça.”. Pois a justiça se confunde com o equilíbrio das coisas, com aquela ordem do mundo onde o poeta quer integrar o seu canto. Confunde-se com aquele amor que, segundo Dante, move o Sol e os outros astros. Confunde-se com a nossa confiança na evolução do homem, confunde-se com a nossa fé no universo. Se em frente do esplendor do mundo nos alegrarmos com paixão, também em frente do sofrimento do mundo nos revoltamos com paixão. Esta lógica é íntima, interior, consequente consigo própria, necessária, fiel a si mesma. O facto de sermos feitos de louvor e protesto testemunha a unidade da nossa consciência”.


In Obra poética, volume I, Caminho


Sophia de Mello Breyner Andresen







5 comentários:

  1. Obrigada, amiga.
    Tudo que li é um alento* pra mim ... "tão bom ler essas palavras"!
    Me fez um bem imenso*...
    Amei os vídeos, especialmente esse último, sabes que meus pais eram portugueses, e não conheço Portugal, recordo-me deles pelas fotos*, também.
    Minha família* está distante agora, tenho primos aí e vivo separada do meu marido que mora no Brasil, mas meu casamento não deu certo.
    Agradeço o e-mail...que li com atenção.Postei um vídeo por causa da tua fé, me deu vontade, procurei um que coube..aqui no coração, pela dor que passo...
    Um forte abraço da Mery*

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  2. A arte nos transcende ao que verdadeira somos.
    Cadinho RoCo

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  3. Não conhecia o filme. Adorei :) Belíssimo post, Luiza.
    beijo

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  4. Que relíquia! Desconhecia também o filme. Feliz estou de vir aqui pela vez primeira e encontrar tal beleza. Saio gratíssima!

    Abraços,

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  5. Grande esse poema - é um poema! - da grande Sophia. Que traz uma grande definição da poesia: a descoberta da presença do real.

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