quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

O meu grito

Um galo sozinho não tece uma manhã: 
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.

E se encorpando em tela, entre todos, 
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão. 
(JOÃO CABRAL DE MELO NETO)

Toma que o filho é teu. Meu?

Para e por Maria Eduarda

Há dois mil anos te mandei meu grito,  
 Que embalde desde então corre o infinito...
 Onde estás, Senhor Deus?... 
Vozes D’África – Castro Alves


Embalde corre o infinito. Inutilmente corre o infinito. Por quem, afinal, chamam os filhos deste solo? Há dois anos escrevo para a pátria mãe gentil. Em vão. A minha Pátria é um Call Center. De quem são os filhos que inutilmente gritam por seu colo?

Minha sobrinha foi assassinada agora à noite. Eu a vi nascer. Hoje a levo de volta. Agora, agora, agora, agora: morrem neste instante dezenas de jovens. Conseguem escutar os gritos?

Não vou falar das alegrias que vivi com ela. Essas estão no lugar daquilo que não pode ser dito. É meu. Mas é preciso dizer algo. E que o dito ganhe muitos outros corpos. Posso gritar e que esse grito se junte a muitos gritos para nos despertar da alienação instalada. Nós vivemos em estado de analgesia. Somente quando somos atravessados por balas, a nossa sensibilidade grita.

Tomada de dor tento te escutar, Maria Eduarda. À própria custa você está me ensinando algo sobre mim mesma. Que a vida é incerta e toda tentativa de antecipação e de controle são vãs? Que a doença está na preciosa adaptação aos esquemas que persistimos criando? Que a custa também é nossa? O que os jovens estão tentando desesperadamente nos fazer escutar?

Semana passada um homem “num dia de cão”, em São Paulo, saiu atirando a esmo. Sim, porque  o controle nessa sociedade que inventamos se espraia insidiosamente, usando de ardis. Em que direção devemos atirar já não sabemos. E por não saber, escondemo-nos nas nossas casas gradeadas, deixando que o outro faça o trabalho sujo. E depois lhe atiramos pedras e bosta.

Hoje as autoridades eleitas e as que almejam a nossa atenção nas urnas foram ao Bonfim. Cheios de fé, querem nos fazer crer, pedem ao Senhor da Sagrada Colina que cuide da cidade. Eu aqui rogo à mesma entidade que não os escute. Precisamos criar a nossa salvação.

Ano passado promotores do Ministério Público reuniram-se para cobrar da Prefeitura de Salvador, considerada a mais negligente com relação ao cumprimento do Estatuto da Criança e do Adolescente, relativamente à proteção daqueles em situação de vulnerabilidade e risco, ações concretas para atenção ao Estatuto. De quem é o filho, afinal, continuo me perguntando? Num jogo de empurra, as crianças, os jovens e suas famílias, longe de um berço esplêndido, são filhos de ninguém. Nós somos os filhos de ninguém. Nós somos filhos do abandono.

Por outro lado, apenas nos lamentamos. Não, o mundo não vai acabar em dezembro. Esta acabando agora, a cada dia, a cada silêncio nosso. E nem percebemos que fomos nós que abrimos a porta para que nosso jardim fosse pisoteado. Como se não bastasse oferecemos em sacrifício o nosso cão e, por fim, subimos nos ombros do gigante  adormecido para apagar a lua.

Meu pai e tantos outros brigaram para que esse fosse um país democrático. Muitos morreram. Hoje já não se morre por uma causa. Morre-se por não comprar o carro último tipo. Meu pai brigou para que um governo de esquerda se instalasse. Lembro que chorou quando colocou seu voto para Lula na primeira vez que ele venceu. Será que vocês não viram o choro do meu pai? Era de alegria. Hoje, meu pai está chorando. Não escutam o grito de tristeza?

Tenho entrado em contato com situações nas quais observo a ausência completa dos poderes públicos. Temas como o extermínio das juventudes são incluídos na pauta de Organizações Não-Governamentais. Jovens e crianças são todos os dias adotados por traficantes e criminosos de toda ordem que assumem o pátrio poder. Na ausência do Estado, a barbárie. Na ausência do cuidado, a droga e a arma. Na ausência do colo, o frio, a raiva e o sentimento de menos-valia.

Estive, ano passado, na Delegacia para Menor Infrator - DAI. Não há água para higienização do ambiente. Não há água para beber. O cheiro desagradável traduz a violência do Estado contra seus filhos e filhas. Os menores são colocados em celas, onde permanecem com roupas íntimas, “para sua segurança”. Nessas celas, nenhuma dignidade. “Que embalde corre o infinito./ Onde estás, Senhor Deus?”.

Os governantes liberaram, agora, verbas para criar instituições de apoio para usuários de drogas. Os astros do planeta axé doaram generosamente o seu cachê. Não ouvi os senhores governador e prefeito, falando no investimento para efetivação de políticas juventude, políticas de promoção da saúde e da educação. Escamoteiam, com tais estratégias, a ausência do Estado, fazendo coro ao jogo de empurra.

O moço de São Paulo estava doido, disseram.  Um psicótico, atuando em delírio, sai atirando para todo lado. A DAÍ não é uma fatalidade. A cracolândia e as sua fronteiras cada vez mais largas não são uma fatalidade.  O desvio de verbas pela corrupção, também não. O país cresce à custa de seus filhos e filhas.

Sempre que ouço comentaristas econômicos me questiono sobre os investimentos do nosso governo. Um país que desponta na economia mundial como grande potência – 6ª economia. Fico envergonhada. Eu grito. Do outro lado da linha, o Call Center me responde: “Senhora, todos os ramais estão ocupados”. E aqui continuo com a boca aberta e um grito. É tudo o que tenho: o meu grito. É tudo o que posso: gritar.

Existe um povo que a bandeira empresta
P'ra cobrir tanta infâmia e cobardia!...
E deixa-a transformar-se nessa festa
Em manto impuro de bacante fria!...
Meu Deus! Meu Deus! mas que bandeira é esta,
Que impudente na gávea tripudia?
Silêncio.  Musa... chora, e chora tanto
Que o pavilhão se lave no teu pranto! ... 
Auriverde pendão de minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que a luz do sol encerra
E as promessas divinas da esperança...
Tu que, da liberdade após a guerra,
Foste hasteado dos heróis na lança
Antes te houvessem roto na batalha,
Que servires a um povo de mortalha!... 
                                        (CASTRO ALVES, NAVIO NEGREIRO)


Ana Rita Ferraz
Cidadã Brasileira
12 de janeiro de 2012

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