quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Canto final ou Agonia de uma noite infecunda




Como a flor cortada rente e desfolhada
ou os olhos vazados da criança
e o seu fio de prano tênue e impotente
assim a noite caminha com os astros
todos em vertigem
até que se atinge o ponto da mudez
a pesada mó triturando a sílaba
a garganta com as cordas dilaceradas
e uma lâmina ácida e pontiaguda
enterrada ao nível da carótida


Entenda-se isto como noite
e o seu transe derradeiro
tanto assim que a flor desfeita
não embala o coração do poeta
oh não
porque a flor defunta
se voa
não sobe nunca
e só dura
o espaço breve duma nota


Assim o vento se detém imóvel
como se da flauta
falhando súbito
na boca do poeta
ficasse o hiato
ou a saliva
de um tempo devassado
por insectos cor de cinza


A voz suspensa e negada
cede a vez à letra amorfa
inserida no silêncio
com seu peso de chumbo e olvido acaba o poema
e um ponto final selando tudo.

Armênio Vieira, poeta e escritor de Cabo Verde, ganhador do Prêmio Camões, 2009.

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