terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Um conto passado que parece presente....

(Imagem: Marcantonio com uma interferência de Cris de Souza permitida pelo autor)


Noturna mente 


Noite de verão e o clima é de invasão. De atenção. De audição. A ausência reveste o cenário na arte dos negros ensaios. Tablado de emblemas, vultuosas cenas sustetam as superfícies porosas, dão sombra às sobras. Noite sem elo. Sem castelo. Sem paralelo. Ruídos fazem frente ao roteiro das perdas - que desmontam nas mãos esquerdas. Corre o grito no corredor, num gesto exasperado de dor. O ato aflige até as falanges do timbre. Noite dos tamancos. Dos barrancos. Dos trancos. Caveiras arrastam cadeiras - zombando de mil maneiras – sobre o drama que se encena na alma e a mente que apresenta seus ossos. Já pelas tantas, o nó que embarga a garganta -faz sala- se esgarça no seio da vala. Noite sem rua. Sem grua. Sem lua. De calo em calo vultos cortam os passos, encarnam o negrume dos cacos oportunos que se rasgam na pele dos cantos soturnos. Noite de fundo. De bumbo. De chumbo. Desfigurando as cortinas das faces, no pseudo silêncio do mundo. 


(Cris de Souza)



segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Sob uma estrela pequenina



Poema de Wislawa SZYMBORKA:

Me desculpe o acaso por chamá-lo necessidade.
Me desculpe a necessidade se ainda assim me engano.
Que a felicidade não se ofenda por tomá-la como minha.
Que os mortos me perdoem por luzirem fracamente na memória.
Me desculpe o tempo pelo tanto de mundo ignorado por segundo.
Me desculpe o amor antigo por sentir o novo como primeiro.
Me perdoem, guerras distantes, por trazer flores para casa.
Me perdoem, feridas abertas, por espetar o dedo.
Me desculpem os que clamam das profundezas pelo disco dos minuetos.
Me desculpe a gente nas estações pelo sono das cinco da manhã.
Sinto muito, esperança açulada, se às vezes me rio.
Sinto muito, desertos, se não lhes devo uma colher de água.
E você, falcão, há anos o mesmo, na mesma gaiola,
fitando sem movimento sempre o mesmo ponto,
me absolva, mesmo se você for um pássaro empalhado.
Me desculpe a árvore cortada pelas quatro pernas da mesa.
Me desculpem as grandes perguntas pelas respostas pequenas.
Verdade, não me dê excessiva atenção.
Seriedade, me mostre magnanimidade.
Ature, segredos do ser, se eu puxo os fios das suas vestes.
Não me acuse, alma, por tê-la raramente.
Me desculpe tudo, por não poder estar em toda parte.
Me desculpem todos, por não saber ser cada um e cada uma.
Sei que, enquanto viver, nada me justifica
já que barro o caminho para mim mesma.
Não me julgue má, fala, por tomar emprestado palavras patéticas,
e depois me esforçar para fazê-las parecer leves.

domingo, 29 de janeiro de 2012

leia....

Veja se você foi um dos que se emocionou com a grávida de Taubaté ou, talvez, se indignou com o cãozinho "enterrado vivo"... (clique na imagem para ler) Este artigo saiu na Folha de São Paulo de hoje...

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Flores do Mais

Devagar escreva

uma primeira letra

escreva

nas imediações construídas

pelos furacões;

devagar meça

a primeira pássara

bisonha que

riscar

o pano de boca

aberto

sobre os vendavais;

devagar imponha

o pulso

que melhor

souber sangrar

sobre a faca

das marés;

devagar imprima

o primeiro olhar

sobre o galope molhado

dos animais;

devagar

peça mais

e mais e

mais.


Ana Cristina Cesar, Rio de Janeiro(1952-1983) - Poeta e tradutora, pertenceu à chamada geração mimeógrafo, ou poesia marginal da década de 70.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012



As ondas quebraram uma a uma.

Eu estava só com a areia e com a espuma

Do mar que contava só pra mim.

Sophia de Mello Breyner Andresen - Porto, 1919-2004

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Para ti

Se o esquecimento
ainda não lhe bastaste
me procura nos pássaros,
no silêncio, na chuva.
Percorre sem fim
o detalhe no instante
e a música virá.
Espera, escuta...

(Luiza Maciel)

*poema de 2010, no qual quis ajudar alguém e por vezes quando ajudamos alguém, ajudamos também nós mesmos...

Coração Fenda

.



«felizes aqueles
a terra toda por alimento
toda a fome por caminho»

Bénedicte Houart


assim sendo
vai
não te detenhas!

se todos os dias de teus lábios nascem muros
mares quebrantos, mil lugares santos
profanados,
se de luzeiros por cada mão
trazes desertos por cada dia mais escuros
e se sobejos de anjo por cada passo
um mapa mundo mal traçado,
então
vai.

não te detenhas
se de teus reinos e ruínas
pouco resta,
se de incerto se faz o passo ao caminho
que não te alimenta, não mais
raiz ou beira,
se desse céu sem relevo
terra barrenta, deserta voz, incerto cais
mas nunca um mar,
então
vai,

faz da tinta o rosto
arroio, chuva salgada as pontas soltas
e por vento travessão um pouco de asa,
vai
e faz da fraga mundo
e do corpo a casa
e das cidades invisíveis, guarda da pedra
frágil, parideira
o sopro lento, lenho cinza tão constante e
vai
não te detenhas

Janeiro 24, 2012

[breve aparte: inédito, editado em simultâneo na A Barca dos Amantes]

[imagem: reprodução de (?), André Petterson]
.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

O Poema





I

Esclarecendo que o poema
é um duelo agudíssimo
quero eu dizer um dedo
agudíssimo claro
apontado ao coração do homem

falo
com uma agulha de sangue
a coser-me todo o corpo
à garganta

e a esta terra imóvel
onde já a minha sombra
é um traço de alarme


II

Piso do poema
chão de areia

Digo na maneira
mais crua e mais
intensa

de medir o poema
pela medida inteira

o poema em milímetro
de madeira

ou apodrece o poema
ou se alteia

ou se despedaça
a mão ateia

ou cinco seis astros
se percorre

antes que o deserto
mate a fome


Luíza Neto Jorge, Lisboa, 1939-1989.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Elis Regina - Maria Maria

BigWig

Bigwig a sua lista de to-do com soluções. Basta fazer a lista que o aplicativo encaminha a solução. Em primeira mão pra você: claro! Há, afinal, meu filho faz parte da equipe que está na cola de botar esta novidade no mercado. É realmente uma revolução. Primeiro você coloca lá as suas prioridades. O aplicativo te diz quem resolve, aonde resolve e como resolve. Seus amigos também podem ajudar. Por enquanto dê uma olohada nisso:
http://bigwiglist.com/


Abismo ardente

Ó Deus das coisas pequenas
Das penugens
Dos fonemas
Da débil lanterna
dos pirilampos:

- Olha pra esse canto
Onde habita minha intimidade
E inflama a centelha
Que anseia pelo abismo ardente!

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Bandolins


Não abusem.


Eu olho pra esses tantos
relógios desencontrados,
pendurados do vácuo [ao
lado de bandolins e cavacos]
e jogo no chão a bituca do
cigarro. Eu preciso deste
último trago ou ele do
meu atraso?



Não abusem.


Eu penso nos agiotas aos
quais devo pelos meus vícios
[insistências em arranhar os
mesmos discos], mas também
penso assim, em definitivo:
ainda que deles tenha me
valido, sou eu a depender
deles ou, agora, o inverso?



Não abusem.



Dedilhando as cordas suspensas
no vácuo [bandolim e cavaco], eu
cogito o mesmo em relação aos
bancos [que, nos últimos meses,
têm falido], e solto este resto de
fio atado a todo resto [por mim,
agora, revisto e abominado] por
entre os dedos.



E cuspo.


 (marcelo Novaes)


 

Simplesmente Elis


Meu próprio sumo



Eu tinha medo de não compreender no fundo o que ele queria dizer. Verdade é que ele sempre me dizia algo estonteante, às vezes o absurdo que eu me recusava a acolher no meu ventre como semente, pra depois gerar um mundo inteiramente insólito, onde,  enfim, eu pudesse habitar.

Eu receava que a mensagem que ele tão cuidadosa ou elaboradamente quis passar não chegasse à minha alma tal qual foi concebida por ele. Isso foi até um dia, quando ele, por alguma razão, falou “árvore”, e lembrei da minha cabeleira indomável da infância, da minha letra enorme de recém-alfabetizada, garranchos que insistiam para que eu diminuísse  e alojasse, espremidos, entre duas linhas estreitas que nunca e nunca me caberiam. Ele falou de galhos estendendo-se ao vento e eu me lembrei das minhas primeiras expressões escritas, que queriam ser grandes como o céu, mas tornaram-se encolhidas, enquanto eu mesma diminuía de tamanho e arregalava os olhos para escutar o sentido daquele mundo ainda desconhecido.

Temia não poder traduzir a dor ou a alegria, talvez o anseio ou o espanto que ele transformou em versos – versos que eu amava, perguntando-me se era possível, mesmo, amar sem compreender...

Pois então, verdade é que acabou acontecendo de ele falar pau e eu entender pedra. De ele dizer “azul” e tudo, então, escurecer, sem vestígios de lua ou estrelas. Dei-me conta, finalmente, do quanto era importante eu extrair meu próprio sumo de quantas frutas ele me sugerisse provar. E eu nem precisava desculpar-me por me ver refletida, tal como podia, na imagem que ele me dava como retrato seu autografado, e já não me constrangia mais ver raios de sol inundando o chão e nem presenciar mulheres com torços brancos na cabeça, pele enrugada, a deitar latas velhas amarradas por cordas até o fundo do poço e de lá retirarem a luz que beberiam e matariam a sede naquele chão rachado pela seca.   

Um dia, então, ele escreveu: "Eu tenho sede...", era a fala de uma de suas personagens. E eu, confiante, completei:"...dai-me agora raios desse sol escaldante, porque essa luz e quentura haverão de aplacar a secura da minha alma"...


Aniversário da Rodovia Presidente Dutra

A estrada que veio modernizar, chamada a princípio de BR2, diminuiu a distância para seis horas de viagem com um traçado novo que substituiu a antiga Rio-São Paulo feita por Washington Luis em 1928. Esta rodovia, inaugurada a 19/01/de1951 possibilitou a modernização e o desenvolvimento do Vale do Paraíba.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Da série a mulher do meu avesso



I

A mulher do meu avesso
guarda sílabas
para fazer, dos fonemas
e dos acentos, os
sotaques dos
meus silêncios.

II

A mulher do meu avesso
repete letras como se fossem
elas sementes
e faz, da sombra dos verbos,
um abrigo para a rocha
e um leito para
o que sente.


III


A mulher do meu avesso
lima a ausência das palavras
e visita a vida que
mal cabe entre os 
dedos e formas
esculpidas 
em pedras sem pesos.

Canto final ou Agonia de uma noite infecunda




Como a flor cortada rente e desfolhada
ou os olhos vazados da criança
e o seu fio de prano tênue e impotente
assim a noite caminha com os astros
todos em vertigem
até que se atinge o ponto da mudez
a pesada mó triturando a sílaba
a garganta com as cordas dilaceradas
e uma lâmina ácida e pontiaguda
enterrada ao nível da carótida


Entenda-se isto como noite
e o seu transe derradeiro
tanto assim que a flor desfeita
não embala o coração do poeta
oh não
porque a flor defunta
se voa
não sobe nunca
e só dura
o espaço breve duma nota


Assim o vento se detém imóvel
como se da flauta
falhando súbito
na boca do poeta
ficasse o hiato
ou a saliva
de um tempo devassado
por insectos cor de cinza


A voz suspensa e negada
cede a vez à letra amorfa
inserida no silêncio
com seu peso de chumbo e olvido acaba o poema
e um ponto final selando tudo.

Armênio Vieira, poeta e escritor de Cabo Verde, ganhador do Prêmio Camões, 2009.

O meu grito

Um galo sozinho não tece uma manhã: 
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.

E se encorpando em tela, entre todos, 
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão. 
(JOÃO CABRAL DE MELO NETO)

Toma que o filho é teu. Meu?

Para e por Maria Eduarda

Há dois mil anos te mandei meu grito,  
 Que embalde desde então corre o infinito...
 Onde estás, Senhor Deus?... 
Vozes D’África – Castro Alves


Embalde corre o infinito. Inutilmente corre o infinito. Por quem, afinal, chamam os filhos deste solo? Há dois anos escrevo para a pátria mãe gentil. Em vão. A minha Pátria é um Call Center. De quem são os filhos que inutilmente gritam por seu colo?

Minha sobrinha foi assassinada agora à noite. Eu a vi nascer. Hoje a levo de volta. Agora, agora, agora, agora: morrem neste instante dezenas de jovens. Conseguem escutar os gritos?

Não vou falar das alegrias que vivi com ela. Essas estão no lugar daquilo que não pode ser dito. É meu. Mas é preciso dizer algo. E que o dito ganhe muitos outros corpos. Posso gritar e que esse grito se junte a muitos gritos para nos despertar da alienação instalada. Nós vivemos em estado de analgesia. Somente quando somos atravessados por balas, a nossa sensibilidade grita.

Tomada de dor tento te escutar, Maria Eduarda. À própria custa você está me ensinando algo sobre mim mesma. Que a vida é incerta e toda tentativa de antecipação e de controle são vãs? Que a doença está na preciosa adaptação aos esquemas que persistimos criando? Que a custa também é nossa? O que os jovens estão tentando desesperadamente nos fazer escutar?

Semana passada um homem “num dia de cão”, em São Paulo, saiu atirando a esmo. Sim, porque  o controle nessa sociedade que inventamos se espraia insidiosamente, usando de ardis. Em que direção devemos atirar já não sabemos. E por não saber, escondemo-nos nas nossas casas gradeadas, deixando que o outro faça o trabalho sujo. E depois lhe atiramos pedras e bosta.

Hoje as autoridades eleitas e as que almejam a nossa atenção nas urnas foram ao Bonfim. Cheios de fé, querem nos fazer crer, pedem ao Senhor da Sagrada Colina que cuide da cidade. Eu aqui rogo à mesma entidade que não os escute. Precisamos criar a nossa salvação.

Ano passado promotores do Ministério Público reuniram-se para cobrar da Prefeitura de Salvador, considerada a mais negligente com relação ao cumprimento do Estatuto da Criança e do Adolescente, relativamente à proteção daqueles em situação de vulnerabilidade e risco, ações concretas para atenção ao Estatuto. De quem é o filho, afinal, continuo me perguntando? Num jogo de empurra, as crianças, os jovens e suas famílias, longe de um berço esplêndido, são filhos de ninguém. Nós somos os filhos de ninguém. Nós somos filhos do abandono.

Por outro lado, apenas nos lamentamos. Não, o mundo não vai acabar em dezembro. Esta acabando agora, a cada dia, a cada silêncio nosso. E nem percebemos que fomos nós que abrimos a porta para que nosso jardim fosse pisoteado. Como se não bastasse oferecemos em sacrifício o nosso cão e, por fim, subimos nos ombros do gigante  adormecido para apagar a lua.

Meu pai e tantos outros brigaram para que esse fosse um país democrático. Muitos morreram. Hoje já não se morre por uma causa. Morre-se por não comprar o carro último tipo. Meu pai brigou para que um governo de esquerda se instalasse. Lembro que chorou quando colocou seu voto para Lula na primeira vez que ele venceu. Será que vocês não viram o choro do meu pai? Era de alegria. Hoje, meu pai está chorando. Não escutam o grito de tristeza?

Tenho entrado em contato com situações nas quais observo a ausência completa dos poderes públicos. Temas como o extermínio das juventudes são incluídos na pauta de Organizações Não-Governamentais. Jovens e crianças são todos os dias adotados por traficantes e criminosos de toda ordem que assumem o pátrio poder. Na ausência do Estado, a barbárie. Na ausência do cuidado, a droga e a arma. Na ausência do colo, o frio, a raiva e o sentimento de menos-valia.

Estive, ano passado, na Delegacia para Menor Infrator - DAI. Não há água para higienização do ambiente. Não há água para beber. O cheiro desagradável traduz a violência do Estado contra seus filhos e filhas. Os menores são colocados em celas, onde permanecem com roupas íntimas, “para sua segurança”. Nessas celas, nenhuma dignidade. “Que embalde corre o infinito./ Onde estás, Senhor Deus?”.

Os governantes liberaram, agora, verbas para criar instituições de apoio para usuários de drogas. Os astros do planeta axé doaram generosamente o seu cachê. Não ouvi os senhores governador e prefeito, falando no investimento para efetivação de políticas juventude, políticas de promoção da saúde e da educação. Escamoteiam, com tais estratégias, a ausência do Estado, fazendo coro ao jogo de empurra.

O moço de São Paulo estava doido, disseram.  Um psicótico, atuando em delírio, sai atirando para todo lado. A DAÍ não é uma fatalidade. A cracolândia e as sua fronteiras cada vez mais largas não são uma fatalidade.  O desvio de verbas pela corrupção, também não. O país cresce à custa de seus filhos e filhas.

Sempre que ouço comentaristas econômicos me questiono sobre os investimentos do nosso governo. Um país que desponta na economia mundial como grande potência – 6ª economia. Fico envergonhada. Eu grito. Do outro lado da linha, o Call Center me responde: “Senhora, todos os ramais estão ocupados”. E aqui continuo com a boca aberta e um grito. É tudo o que tenho: o meu grito. É tudo o que posso: gritar.

Existe um povo que a bandeira empresta
P'ra cobrir tanta infâmia e cobardia!...
E deixa-a transformar-se nessa festa
Em manto impuro de bacante fria!...
Meu Deus! Meu Deus! mas que bandeira é esta,
Que impudente na gávea tripudia?
Silêncio.  Musa... chora, e chora tanto
Que o pavilhão se lave no teu pranto! ... 
Auriverde pendão de minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que a luz do sol encerra
E as promessas divinas da esperança...
Tu que, da liberdade após a guerra,
Foste hasteado dos heróis na lança
Antes te houvessem roto na batalha,
Que servires a um povo de mortalha!... 
                                        (CASTRO ALVES, NAVIO NEGREIRO)


Ana Rita Ferraz
Cidadã Brasileira
12 de janeiro de 2012

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Sol à mente






O sol sentiu vontade de ver

sua própria imagem.

Deixou-se refletir numlago

Miragem

Como Narciso, encantou-se

com o reflexo de sua beleza

do seu calor e natureza.

Imagem.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Oráculos

 
 
Uma pétala de flor
Se entregou
[dançando] ao vento
E eu soube que tu vinhas.

O repicar dos sinos
A borboleta no ombro
Os borrões de café
Essa cara de assombro
Tua letra no fundo do copo.

Uma estrela cadente
Atravessou os céus
E a tua chegada
Virou meu destino.

Um aperto no peito
Uma faca quebrada
Um silêncio estrondoso
Uma nova alvorada
Tua insólita imagem
no meu espelho.

Um Arcano Maior
Revelou-me os mistérios
Que antecedem o minuto
Da tua chegada.

[E nas madrugadas
Os astros já se alinham
À tua espera...


Paisagem primitiva


Penso agora no quanto ele é atraído para o que é estrangeiro, para o que atravessa oceanos e tem cheiro de coisas longínquas, inatingíveis. Lembro disso e imagino se ele soubesse das paisagens mais íntimas, das súbitas semelhanças entre nós e nós mesmos, das rasas poças que refletem com exuberância os dias de abril. Ele não sabe...


Mas eu sei – olhamos diferentemente a vida. Há fatos e espantos para os quais já não há ouvintes. Anuncia-se o grande, propagam-se trovões, tragédias, terremotos, e uma multidão autômata espera a vida acontecer em néon, em cada avenida da terra forasteira.

E enquanto isso...

cíclicas explosões de estrelas
acontecem intimamente.
E enquanto isso...
pássaros inquietos
arranham-me a garganta
pra libertar seu voo.
E enquanto isso...
a inocência primeva
irrompe como diamante
no fundo de cada olhar.
E zumbem insetos
Ruflam as asas aves solitárias
Sapos coaxam
Sibila o vento
Feras atônitas espreitam-me
na sonora paisagem primitiva
de minha alma...

Elis Regina - 17/03/45 - 19/01/1982




Canção escocesa

Tudo o que você queria era o solo de
guitarra do escocês de Glasgow, tirando
aqueles gemidos longos, fazendo a guitarra
ganir. Você queria a música ganindo saindo
da porta de uma taberna escura, e você na rua,
à procura de amigos. É assim agora, por aqui
e por toda Escócia.

Não há companhia que se descubra numa fila.
Os amigos que se fazem, junto à bebida, duram
por um dia. À noite, só a lua não faz ruído. E o
que te resta é compor canções na madrugada,
acender castiçais que tragam a luz morna e
que ela afugente o frio, até de manhãzinha.
Não há companhia que se descubra numa
fila, num trem, numa rodovia, quando os
pedágios avisam que não há ninguém nos
carros nem nos caminhões. Só há vinténs.

E é bom ouvir a gaita de fole insuflando os
passos que ainda te fazem seguir. Eia! Eia!
E há os gemidos longos, transalpinos, como
há gelo nos túmulos, marcando as dores do
caminho. Essa é a música que chora quando
dorme a luz da torre da prefeitura, que a
todos ignora. É assim aqui e agora, e
também por toda a Escócia.

As noites são mais longas. Há um certo
canibalismo do tempo, que devora as
orações das viúvas e mina os seus
sustentos. E isso é claro agora,
como nunca fora. Desde Cronos,
devorando a Aurora. E até se
pensa se, nesse contexto,
aliviaria, um tanto, o
toque de uma pessoa.
Talvez, nem isso.

Uma dessas que não saem às ruas, com medo.
Dessas que estão nas tabernas se refugiando
de si mesmas. A música da rua é mais sonora,
é sua, a que você carrega agora, desviando de
bêbados nas esquinas. Assim é aqui, e por
toda a Escócia. Aprenda a rezar, enquanto
segue a pé. É uma oportunidade ótima.

As canções melhores se farão no passo a
passo. Longe dos candelabros. Longe dos
párocos e dos bêbados. Dê os teus centavos
e um bom café à menina, deitada no chão da
rua fria. E assobie uma melodia uma canção
que faça na hora. Esteja você aqui, ou na
Escócia. É assim agora.

(Marcelo Novaes)
IV


Estremecí quando ela disse:

'Cuide bem de seu abismo'.

Pensava estar sob um véu

e descubro que arrasto (in)visível

meu precipício.


Faço cipó de letras

e desço.

Teço corda de texto

e retorno.

No despenhadeiro

marcas de unha

e memória.


Martha Galrão, em A Chuva de Maria - Editora Kalango, Salvador(BA)

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012



Que fizeste das palavras?

Que contas darás tu dessas vogais

de um azul tão apaziguado?

E das consoantes, que lhes dirás,

ardendo entre o fulgor

das laranjas e o sol dos cavalos?

Que lhes dirás quando

te perguntarem pelas minúsculas

sementes que te confiaram?


Eugênio de Andrade, Portugal (1923-2005)

A sociedade é assim:



A sociedade é assim:

o pobre trabalha;

o rico o explora;

o soldado defende os dois;

o contribuinte paga pelos três;

o vagabundo descansa pelos quatro;

o bêbado pelos cinco;

o banqueiro estafa os seis;

o advogado engana os sete;

o médico mata os oito;

o coveiro enterra os nove;

e o político vive à custa dos dez.

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Outubro

(Um poema do Marcelo que ofereço a mim mesma, que nasci em outubro...rs)




Muito mais escorregadia [e menos
azul] a baleia, após atravessar a mancha.
[Do fundo do mar, jorram barris há cem
dias].

Meus olhos, calcinados em vigília,
buscam [para si mesmos e para a
baleia] um lugar para ancorar:
limpa e gentil clareira d’água.

Aquele sou eu: a criança nascida
d’uma barriga suja. Aquele que chora
[e em seu choro eclipsa o galo e a
Aurora] sou eu: que, em diluído &
Enegrecido Azul, extertora,
acompanhando o pesar da
última estrela.

[O dorso da baleia é incapaz
de espelhá-la].


Jorram barris no mar. Meus
olhos, em vigília, contemplam
peixes cegos e algas em
tormento.

Quisera fosse a massa fóssil
fogo talvez, para arrefecer &
arremessar tudo, lavando o
Negro do meu dorso.

Porque também estou ali:
criança gemendo e alijada
do ventre sujo.

Eu nasci no Outubro mais
Entranhado no seio dos anos
todos. Outubro caudaloso e
amarelo-turvo, onde cantava
[desde o Início] o corvo.

Não sei porque preconceito
com certos pássaros. [Medo,
talvez]. No caminho para o
jardim, há cardos. Lindas
flores de cactus, luzes
por entre galhos,
agulhas solares.


Eu nasci azul-dependurado,
respirando pouco. Experimentei
o vir-ao-mundo como longa expulsão
contrátil: dezenove horas ao todo.

Memórias de gralhas no lugar
das vozes da enfermaria. Barcos
contra muros. Redes asfixiadas de
algas. A cidade imóvel, diante [ou
atrás] dos meus soluços.

Incubadora de outubro: marco
definitivo. Passo primeiro [sob
escombro & grito] para o aceno
do Alto. Pálida chuva me acolhia
desde o Porto.

E eu, encardido como a coruja,
encolhido e aninhado no escuro,
alheio aos rumores e remorsos de
fora: pai, mãe, médicos, tias, tios.

Alheio às nuvens
apinhadas de
pássaros.

Prodígios de verão e eu com frio,
respirando aos bocados. Afastado,
talvez, do céu em júbilo e da alegria
de outros pais.

No Outubro mais entranhado
[e eu entranhado no mais-outubro],
conheci o girar do tempo e as manhãs
esquecidas de luz solar. E não eram
elipses ou parábolas a contarem
datas, mas memórias de fórceps
& contorções & respiração
difícil.

Era o bosque coberto de arroxeados
soluços [& reflexos-de-sobressalto] no
corpo recém-nascido.

E eu me lembro de tudo [no
entranhado Outubro] como se
fosse Outro.

O primeiro e auspicioso
passo para o Mistério.

Nasci em entranhado Outubro,
em dia de aniversário. Nasci velho,
abrasando o tempo que viria, a
escalada da montanha, a
incorporação de meio
século na medula.

(Marcelo Novaes)

Não Sei Dançar


Ouvi no rádio hoje, em época de discussão sobre crackolândias, que a semana de 22 foi regada à cocaina.
Manuel Bandeira escreveu algo a respeito.

Não sei Dançar
Uns tomam etér, outros cocaína.
Eu já tomei tristeza, hoje tomo alegria.
Tenho todos os motivos menos um de ser triste.
Mas o cálculo das probalidades é uma pilhéria...
Abaixo Amiel!
E nunca lerei o diário de Maria Bashkirtseff.

Sim, já perdi, pai, mãe, irmãos.
Perdi a saúde também.
É por isso que sinto como ninguém o ritmo do jazz-band.

Uns tomam etér, outros cocaína.
Eu tomo alegria!
Eis aí por que vim a este baile de terça-feira gorda.
Mistura muito excelente de chás... Esta foi açafata...
- Não, foi arrumadeira.
E está dançando com o ex-prefeito municipal.
Tão Brasil!
De fato este salão de sangues misturados parece o Brasil...
Há até a fraçaõ incipiente amarela
Na figua de um japonês.
O japonês também dança maxixe:
Acugêlê banzai!
A filha do usineiro de Campos
Olha com repugnância
Para a crioula imoral.
No entanto o que faz a indecência da outra
É dengue nos olhos maravilhosos da moça.
E aquele cair de ombros...
Mas ela não sabe...
Tão Brasil!

Ninguém se lembra da política...
Nem dos oito mil quilômetros de costa...
O algodão de Seridó é o melhor do mundo... Que me importa?
Não há malária nem moléstia de Chagas nem ancilóstomos.
A sereia sibila e o ganzá do jazz-band batuca.
Eu tomo alegria!

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Dias e noites de amor e de guerra

Uma noite, há muitos anos, num boteco do porto de Montevidéu, estive

até o amanhecer bebendo com uma puta amiga, e ela me contou:

- Sabe uma coisa? Eu, na cama, não olho nunca os olhos dos homens. E trabalho com os olhos fechados. Porque se eu ohar para os olhos dos homens fico cega, sabe?


Eduardo Galeano, L&PM Pocket - Trad. Eric Nepomuceno

Guilty Pleasure

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Colagens

 
 
 
 
Colou, em cada entrelinha da enciclopédia, um mistério que enriquece a vida e desmascara a ciência.
 
(Tuca Zamagna -http://tucazamagna.blogspot.com/ )

Rosacéu



O motivo para a poesia

é a vida rubra,

rosácea de dengo e lamúria.

Esse roseiral inundado

de corolas dobradas e

pétalas de incontáveis perfumes.

Rosa-menina, rosa-louca,

rosa-de-cão, rosa-dos-ventos.

No Rosário de Ifá procuro meu rumo.

O motivo para a poesia

é a rosa rubra.

Esse brasão que imprime

em incontáveis vermelhos a minha loucura.


Martha Galrão, em A Chuva de Maria - Editora Kalango, 2011 - Salvador(BA)

A autora é uma das colaboradoras do 'Mínimo Ajuste' e editora do blog

Para se compor certa poesia






Para se compor poesia,
[uma das espécies de
poesia], há que se ter
três habilidades,
somente
três:

1. a habilidade de agarrar
nuvens;

2. colocá-las em ordem,
o que implica em saber
distinguí-las;

3. recompô-las em processo.

(Marcelo Novaes)

sábado, 7 de janeiro de 2012

Poética

Nu descendo a escada - Duchamp

Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente
protocolo e manifestações de apreço ao Sr. diretor.
Estou farto do lirismo que para e vai averiguar no dicionário
o cunho vernáculo de um vocábulo.
Abaixo os puristas
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis
Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja
fora de si mesmo
De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante
exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes
maneiras de agradar às mulheres, etc
Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbedos
O lirismo difícil e pungente dos bêbedos
O lirismo dos clowns de Shakespeare

- Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.


Manuel Bandeira, Recife, Pernambuco (1886-1968)

Branco

imagem google



O véu que lhe encobre a face
desperta um ar jovem e pueril.
Alma encoberta num disfarce
toca num velho disco de vinil
um som que a distância arranhou
de um sonho de amor que brotou
rompendo barreiras, que a distância
sem piedade, um dia separou.

Ajuste musical

Definições que são tão curtas,

Decisões tomadas rápidas,

Escolhas que ficam duvidosas.
A vida passa num assombro,
Nm rompante.
Desperta paixões,
Cria ilusões.
E eu aqui, perdida entre as tremendas sensações que me despertas.
Dividida entre o desejo de ser eu mesma, e me atirar em ti de uma só vez,
E o medo de ser demais, e te perder,
Sem perceber, de vez.

O homem do violão azul

Homem curvado sobre violão,

como se fosse foice.

Dia verde.

Disseram: "É azul o teu violão,

Não tocas as coisas tais como são."

E o homem disse: "As coisas tais como são

se modificam sobre o violão."

E eles disseram: "Toca uma canção

Que esteja além de nós, mas seja nós,

No violão azul, toca a canção das coisas

justamente como são."

Não sei fechar um mundo bem redondo,

Ainda que o remende como sei

E chegue quase ao homem que não cantei.

Canto heróis de grandes olhos, barbas

De bronze, mas homem jamais cantei.

Ainda que o remende como sei

E chegue quase ao homem que não cantei.

Mas se cantar só quase ao homem

Não chega às coisas tais como são,

Então que seja só o cantar azul

De um homem que toca violão.

Wallace Stevens, Pensilvânia, EUA (1879-1955)

Abre Caminho

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Deixe ir



Sinta-se responsável pela própria felicidade com a confiança de quem recorda o que realmente mais lhe importa.
Com carinho,
Sílvia Costardi

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Da série há o mar nos meus ouvidos



            Há o mar nos meus ouvidos, verbo aquático a calar o vento sul, esse sopro da minha rocha e dos silêncios da minha essência. Há o amar afogado no lado de dentro do dentro dessa muralha em que rio das histórias e das correntezas que movem os meus afagos.