Há perguntas simples e difíceis a que não sei, se sei responder convenientemente ou, assertivamente, como diz a psicologia. A psicologia diz tão bem, coisas que eu sei tão mal. Adiante.
Mas há uma pergunta em especial que me deixa angustiada desde pequena. E como ficava angustiada, mentia. A minha mãe perguntava
- ainda te dói? E eu dizia. Não. Mas doía. Imenso. Talvez tenha sido assim que aprendi a suportar a dor. Fazia qualquer coisa para não ir ao médico. Ainda hoje. Menos. Mas a pergunta atravessou os tempos. E quando o Senhor Doutor me fixa e atira, solene
- E a dor? Como é a dor?
Cava-se um silêncio tamanho à minha volta, que não me sai nada. Explicar uma dor, é uma coisa tremenda. Dói-me sempre mais do que a dor. Sei que sofro de défice de objectividade. Nunca sei explicar cirurgicamente.
Expectante, o médico arremessa frases curtas, contra a minha incapacidade de balbuciar analogias. E eu, digo que sim ou que não, conforme. Quase sempre inconformada com as hipóteses que me dá. Até porque me distraem da minha dor.
- Assim, uma dor como se fosse uma lâmina?
E eu a pensar – sim - que eu não sou capaz de dizer nada, mas penso - uma lâmina de metal, uma lâmina de sílex? Lá fico eu enfiada entre minutos de pensamentos estapafúrdios que me ocorrem em ocasiões impróprias e sérias.
Enquanto não lhe respondo, o Senhor Doutor, vai falando: as pessoas têm maior ou menor capacidade para aguentar a dor. A dor é um sinal do corpo. Um alerta. Por ínfima que seja, devemos prestar-lhe atenção. Pode não ser nada. Mas também pode ser tudo. Há pessoas que não ligam aos sinais, ignoram-nos, não lhes dão a importância que de facto tem. Há pessoas que os minimizam. Fazem de conta que não sentem dor. Até que ela se vá embora. É uma estratégia como outra qualquer. Que resulta ou não.
E enquanto o médico fala a dor alivia. A tensão só regressa, quando insiste
- e a dor, explique-me?
E eu novamente sem saber o que me dói mais. Se o ombro, o braço, o pé, o estômago, o joelho – não interessa – ou se a alma. A pressentir aquela terrível pergunta objectiva como um termómetro. A minha ficha de paciente à sua frente. Tenho sempre a tentação de lhe pedir para me deixar ler as suas notas. Para ver o que é que, ao longo dos anos, ele foi apontando sobre as minhas dores. Nunca o fiz.
Olha-me, mais uma vez. Pousa a caneta, coloca as mãos unidas em cima da secretária, levanta a mão para ajeitar os óculos sob o nariz e está iniciada a mini coreografia que antecede a sua insistência.
- E a dor, como é a dor? Ora, tente.
E eu incapaz, sequer, de dizer ai! Uma aflição imensa. Como se não houvessem palavras no mundo.
- E então? É como se fosse uma agulha a picar ligeiramente? Assim mais picadelas espaçadas ou uma lâmina...
De um só fôlego, tomada pelo desespero de todas as vezes que não lhe respondi: é assim uma dor como se eu nunca tivesse feito um papagaio de papel; como se nunca tivesse beijado o sorriso mais quente e húmido da terra; como se nunca ninguém me tivesse contado uma história antes de dormir; como se me roubassem a minha única carta de amor; como se toda a vida eu tivesse de dançar sozinha; é como não terminar um puzzle porque se perdeu a última peça; mais concretamente é como se não houvesse literatura. Nem discos, nem quadros, nem cores. É uma dor como se a minha vida fosse de giz e me apagassem a memória.
É assim a minha dor no joelho, Senhor Doutor.
Mas há uma pergunta em especial que me deixa angustiada desde pequena. E como ficava angustiada, mentia. A minha mãe perguntava
- ainda te dói? E eu dizia. Não. Mas doía. Imenso. Talvez tenha sido assim que aprendi a suportar a dor. Fazia qualquer coisa para não ir ao médico. Ainda hoje. Menos. Mas a pergunta atravessou os tempos. E quando o Senhor Doutor me fixa e atira, solene
- E a dor? Como é a dor?
Cava-se um silêncio tamanho à minha volta, que não me sai nada. Explicar uma dor, é uma coisa tremenda. Dói-me sempre mais do que a dor. Sei que sofro de défice de objectividade. Nunca sei explicar cirurgicamente.
Expectante, o médico arremessa frases curtas, contra a minha incapacidade de balbuciar analogias. E eu, digo que sim ou que não, conforme. Quase sempre inconformada com as hipóteses que me dá. Até porque me distraem da minha dor.
- Assim, uma dor como se fosse uma lâmina?
E eu a pensar – sim - que eu não sou capaz de dizer nada, mas penso - uma lâmina de metal, uma lâmina de sílex? Lá fico eu enfiada entre minutos de pensamentos estapafúrdios que me ocorrem em ocasiões impróprias e sérias.
Enquanto não lhe respondo, o Senhor Doutor, vai falando: as pessoas têm maior ou menor capacidade para aguentar a dor. A dor é um sinal do corpo. Um alerta. Por ínfima que seja, devemos prestar-lhe atenção. Pode não ser nada. Mas também pode ser tudo. Há pessoas que não ligam aos sinais, ignoram-nos, não lhes dão a importância que de facto tem. Há pessoas que os minimizam. Fazem de conta que não sentem dor. Até que ela se vá embora. É uma estratégia como outra qualquer. Que resulta ou não.
E enquanto o médico fala a dor alivia. A tensão só regressa, quando insiste
- e a dor, explique-me?
E eu novamente sem saber o que me dói mais. Se o ombro, o braço, o pé, o estômago, o joelho – não interessa – ou se a alma. A pressentir aquela terrível pergunta objectiva como um termómetro. A minha ficha de paciente à sua frente. Tenho sempre a tentação de lhe pedir para me deixar ler as suas notas. Para ver o que é que, ao longo dos anos, ele foi apontando sobre as minhas dores. Nunca o fiz.
Olha-me, mais uma vez. Pousa a caneta, coloca as mãos unidas em cima da secretária, levanta a mão para ajeitar os óculos sob o nariz e está iniciada a mini coreografia que antecede a sua insistência.
- E a dor, como é a dor? Ora, tente.
E eu incapaz, sequer, de dizer ai! Uma aflição imensa. Como se não houvessem palavras no mundo.
- E então? É como se fosse uma agulha a picar ligeiramente? Assim mais picadelas espaçadas ou uma lâmina...
De um só fôlego, tomada pelo desespero de todas as vezes que não lhe respondi: é assim uma dor como se eu nunca tivesse feito um papagaio de papel; como se nunca tivesse beijado o sorriso mais quente e húmido da terra; como se nunca ninguém me tivesse contado uma história antes de dormir; como se me roubassem a minha única carta de amor; como se toda a vida eu tivesse de dançar sozinha; é como não terminar um puzzle porque se perdeu a última peça; mais concretamente é como se não houvesse literatura. Nem discos, nem quadros, nem cores. É uma dor como se a minha vida fosse de giz e me apagassem a memória.
É assim a minha dor no joelho, Senhor Doutor.
Texto: marta vaz /Imagem: Alex Gozblam
MARTA!
ResponderExcluirQue delícia de texto! Identifiquei-me com ele. Também sou assim. Uma vez expliquei a dor no abdome como uma dor que só passa com uma caixa de som em cima. Claro que o médico, por ser bom, entendeu. Mas essa mania de perguntar como é a dor é HORRÍVEL. Examinem e saberão.
Ri muito!
Beijos e parabéns!
Mirze
Um texto maravilhoso e também lembrei de mim, da dificuldade de ser objetiva para descrever dores inoportunas, e a vontade constante de comparar, sempre, as dores do momento a outras dores, tipo: "Ah, sim, essa dor é a continuidade de outra dor, que tive há tanto tempo, talvez seja essa a mesma dor de antes e de sempre...a dor é única, ainda que se fragmente, que se mostre com outras faces, que venha devagar..."...rs enfim, adorei o texto, muito!
ResponderExcluirBeijos,
Mirze, obrigada!
ResponderExcluirainda bem que a fiz rir :) e sim, perguntar é fácil, examinar é bem mais difícíl ;)
bjo
pois é Tânia! e comparar dores, fazer analogias com coisas tão distintas como lâminas a cortar, mosquitos a picar etc... é sempre algo que me deixa a pensar em situações irrisórias...enfim :)
ResponderExcluirbeijo e obrigada
Marta, está ótimo o seu conto :) Parabéns! Gostei demais de ler.
ResponderExcluirbeijosss :)