sexta-feira, 17 de setembro de 2010

O Principio dos Labirintos (ou O Primeiro Texto)

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Na linha das fronteiras também existe um eu, um tu; também se constroem segredos que se tomam o caminho de todas as estórias, das que se alimentam deuses e demónios, esses afilhados dos homens que querem dormir mas não sabem como sonhar. Na linha imaginária do eu que sou tu, ou vice-versa, aprende-se na escola primária das palmas da mão que não se deve resistir ao tempo, seja de partida ou de chegada; tanto faz que seja dia de santo ou dia de temporal, que na linha onde residem o eu e o tu, nascem, crescem e morrem os dias que passam por aqui e deambulam por aí, até se cansarem das preces de quem passa e não pára nem num lado, nem noutro, porque a linha das fronteiras não pertence a lado nenhum e aí repousam os dias de quem se esqueceu de viver, fosse apenas por esquecimento ou preguiça. “Aqui não há tempo, ‘ilho, aqui há miséria para homem degustar!...”, adverte-me por vezes o Salvo Conduto, o velho que parece ter a idade do tempo nos seus primeiros dias, “… a vida é latrina para morto cheirar e vasculhar; verdadeiro vivo não se preocupa com tempo para gastar; gasta tempo sem cuidar que já não tem crédito junto do Senhor Bendito seja lá em cima, que nós cá por baixo padecemos!”; creio já te abordou da mesma forma, com tanta ou mais certeza, mas o tempo faz turvar as formas mais breves da memória, para que se distenda pelas rodeiras da pele dos que sobrevivem sem faltas, tanto como resistem sem abundâncias: “Coisas, são brincadeiras para que homem não se esqueça que já foi menino, mas como sempre faz batota e quer mais que a profundeza dos seus bolsos; com paciência, na terra que não pertence a ninguém, tudo se transforma em abundância: o pouco é muito, o nada é quase tudo, o que não existe faz de nós, ‘ilho, pobres demais para conhecer a desgraça da miséria: essa é puta fina que se cola na camisa dos mestres-de-obras do Diabo, que esteja lá em baixo em paz, que por aqui tem muitos e bons trabalhadores por sua conta.” Divaga muito o Salvo Conduto, velho de outras idades, bússola sem Norte ou Sul, que nos orienta pelas linhas, tantas como os rios que riscam a terra, e tanto, tanto fala que pudesse o dia ter vinte e quatro horas e as suas advertências contar-se-iam como os minutos que se reúnem em final de jornada para o seu acerto de contas, junto do seu livro onde apenas se anotam os rascunhos na coluna do Haver, que os balanços, seja obra por quem tenha discernimento para equilibrar o que não faz sentido; os loucos que tratem da coluna do Deve, nesse livro de Contas e Habilidades. Tratem os Filósofos e os Geómetras, os Historiadores e os Génios da Medicina, esses Catedráticos das idiotices do mundo, desses oitenta trabalhos do demónio, oleiro de todo o mundo que passa nas margens das fronteiras e que nem se sabe onde começa, nem se suspeita que onde acabe, quanto mais se em lado algum!

Na linha das fronteiras, há sempre lugar para mais um, ainda que já existam um eu, um tu e uma aldeia em miniatura, onde se reúnem os mentirosos que já atravessaram sete mares sem terem molhado um pé que fosse, onde se reúnem os desgraçados que se deixaram perturbar pelo amor e essas coisas do tipo e etcetera, acreditando que para o puro todas as coisas seriam puras, onde as moradas iludem todos os carteiros do mundo, que acreditam no nome das ruas, como as crianças no pote de ouro no arco onde se esconde o arco-iris. Este lugar não tem nada demais, nem nada de menos; apenas alguns nadas, mal classificados e ordenados à pressa, que coisas mais prementes têm os homens em mente.

Neste lugar, e deixem que vos alerte para tal fortuna, se existem estradas, não se conseguem encontrar; mas existem buracos escondidos por muitas pedras, que com o tempo se perderam por aqui. Existem linhas por onde nos cremos orientados, ainda que sejam tão constantes como as mais profundas crenças do homem que se deixou abandonar, em silêncio, na farta terra do nada; há muito por construir onde nada existe, e como tal, só essa pode ser a Fronteira Prometida, o lugar onde o eu e o tu sempre se podem encontrar, sem que sejam necessários compromissos ou promessas de trocas eternas, o que é uma forma de evitar os litígios e a discórdia que trazem todos apertos selados pela mão do homem; “Se procurares bem, ainda há uma estrada que traz os muitos poucos até este sitio, mas como é estrada de e para sitio nenhuma, ‘ilho, esconde-se aos olhos de quem acredita que só pelos caminhos se conhece mundo e pelas margens das linhas das fronteiras, ele se divide. Deixa para os néscios que não sabem por onde haverão de fugir, as estradas do mundo; tarde ou cedo saberão se procuram o que não sabem onde encontrar ou se fogem de si próprios, onde nunca quiseram ficar, mas a cobardia não os permitiu ir mais longe. Tarde ou cedo, passam por aqui, mas raramente sabem que há sempre lugar para mais um, nessa linha imaginária que se destrói tanto mais quanto a queres delimitar. Deixa lá, um mundo feito em sete dias também não poderia sair grande coisa, não é?”


18 de Janeiro 2009

[aparte breve: este, para o bem e para o mal, foi o primeiro texto que editei num blog, no Na Linha das Fronteiras. A imagem é a reprodução dum trabalho de Erik Johansson]

5 comentários:

  1. Leonardo, postei um comentário lá na sua Casa.
    bjs.
    Sílvia

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  2. Adorei. Tou cansada feito um zumbi, muito cansada, mas o texto me fisgou. Então, quando a cabeça estiver boa, volto porque vi que vale muito a pena.
    bj.

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  3. Antes, eu estava cansada, agora, estou um tanto alcoolizada, então, volto de dia para comentar com decência porque eu GOSTEI!

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  4. Parece que a maioria de nós...
    nunca está satifeita com os caminhos escolhidos...e quando perdemos a brincadeira...
    aí...sim...perdemos...também...
    os novos caminhos...

    Lindo seu texto...
    e a imagem...
    inspiradora...

    Beijos
    Leca

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  5. Para mim, o que é mais tocante nesse texto é essa provocação que ele faz para que enxerguemos as próprias linhas e as que misturamos com as outras pessoas, porque vamos olhando para as quem estão sob os pés e esquecemos de olhar as que nos envolvem de outras maneiras. Gostei muitíssimo. É um texto, além de muito bem escrito, profundo.

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