quarta-feira, 8 de setembro de 2010

As explicações do mundo segundo Salman Rushdie…

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«Durante muito tempo acreditei (…) que em todas as gerações existem umas tantas almas, chamemos-lhes felizes ou desgraçadas, que não nasceram para se integrarem, que vieram a este mundo meio separadas, sem uma ligação forte a uma família, a um local, a uma nação ou uma raça; que pode até haver milhões, biliões de almas assim, talvez tanto de integrados como de não integrados; que, em suma, esse fenómeno pode ser uma manifestação da natureza humana tão “natural” como o seu oposto, mas que ao longo da história dos homens tem sido frustrado por falta de oportunidades. E não só: porque as pessoas dão mais valor à estabilidade e que teme tudo o que é transitório, incerto, mutável, construíram um poderoso sistema de estigmas e tabus contra o desenraizamento como força desestabilizadora e anti-social e assim conformamo-nos a maior parte das vezes, fingimo-nos motivados por lealdades e solidariedades que realmente não sentimos, escondemos as nossas identidades secretas sob a pele falsa das identidades marcadas com o selo da aprovação. Mas a verdade escapa-se nos nossos sonhos; sozinhos na cama (porque estamos sós na noite, mesmo quando não dormimos sós), elevamo-nos, pairamos, fugimos E naqueles sonhos acordados, permitidos pela sociedade, os nossos mitos, a nossa arte, as nossas canções, celebramos aqueles que não pertencem ao grupo, os diferentes, os fora-da-lei, os excêntricos. Aquilo que proibimos a nós mesmos, pagamos bom dinheiro para admirar num teatro ou num cinema ou nas folhas de um livro. Nas nossas bibliotecas, livrarias ou locais de diversão fala-se verdade. O vadio, o assassino, o rebelde, o ladrão, o mutante, o banido, a máscara. Se não reconhecêssemos neles as necessidades que não podemos preencher, não os inventariamos vezes e vezes sem conta, em cada sitio, em todas as línguas, em todos os tempos, a cada passo.
Assim que houve navios, corremos para o mar, atravessando oceanos em barquinhos de papel. Assim que houve automóveis, fizemo-nos à estrada. Assim que houve aviões, voamos como setas até aos cantos mais remotos do planeta. Agora sonhamos com o lado escuro da lua, as planícies rochosas de Marte, os anéis de Saturno, as profundezas interestelares. Pomos em órbita fotógrafos mecânicos, ou mandamo-los em viagem sem regresso até ás estrelas, comovemo-nos até às lágrimas com as maravilhas que eles transmitem, sentimo-nos pequenos perante as grandiosas imagens de galáxias distamtes que parecem as nuvens no céu, damos nomes a rochedos extraterrestres como se fossem animais de estimação. Procuramos a urdidura do espaço, a demarcação dos limites do tempo. E é esta a espécie que vive na ilusão de que gosta de ficar em casa e de ter – como é que se diz? – laços.
Esta é a minha opinião. Ninguém é obrigado a aceitá-la. Talvez não haja assim tanta gente como nós, ao fim e ao cabo. Talvez sejamos de facto desestabilizadores e anti-sociais e devêssemos ser proibidos. Todos temos direitos às nossas opiniões. Eu só digo: durmam bem, queridos. Durmam bem e bons sonhos.»

De O Chão que Ela Pisa, Salman Rushdie


|nota: editado hoje, também, no Impressões Digitais|
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8 comentários:

  1. Cada um tem o direito de falar e lutar pelo que acredita...
    Somos todos diferentes mais acredito que tenha espaço sufuciente para tdos.

    Kisses
    Thaty
    Pedaços do Cotidiano

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  2. Texto profundo, corajoso e revelador!
    "....escondemos as nossas identidades secretas sob a pele falsa das identidades marcadas com o selo da aprovação. Mas a verdade escapa-se nos nossos sonhos..."
    Não poderia esperar outro texto de um escritor
    que foi capaz de escrever "Os Versos Satânicos"!

    Obrigada, Leonardo. Muito bom mesmo!

    Um grande abraço

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  3. liiiiiiiindíssimo...
    E sempre dizem...
    nunca me pergunte do que fala o meu poema...
    um poema sempre fala de outra coisa!
    E foi o que eu senti quando li o texto...
    Milhares de perspectivas diferentes..
    genial!

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  4. Incrível!
    Vou querer o livro.
    Sempre me atordoa essa sensação de integrados e desintegrados, dos que se enquadram e dos que se negam ao enquadramento, porque é difícil ser diferente em um mundo em que há um desejo inexplicável de molde feito em série.
    Bárbaro!

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  5. Aqui no Brasil, está esgotado e fora de catálogo. A edição é de 1999. Fiquei desolada porque queria muito. Mas quantas coisas queremos...

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  6. Este comentário foi removido pelo autor.

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  7. Excelente Texto Leonardo B. Obrigada! "A vida é sempre a mesma para todos: rede de ilusões e desenganos. O quadro é único, a moldura é que é diferente."Florbela Espanca.
    Bjs.
    Sílvia

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