quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Tudo à minha volta




" Tudo à minha volta cumpre
   um destino silencioso e incompreensível
   a que algum deus fugaz preside.
   Fora de mim, nas costas da cadeira

   o casaco, por exemplo, pertence
   a uma ordem indistinta e inteira.
   Dava bem todo o meu sentido prático
   pela sua quieta permanência em si e na cadeira.

   A realidade dos livros em cima da mesa
   parece tão estritamente real!
   As filhas falam, barulhentas e reais,
   e eu próprio, em qualquer sítio, sou real.

   Sob este rio real
   o rio que me arrasta, de palavras,
   corre dentro de mim ou fora de mim?
   O que pensa? Estou lá, ou está lá alguém,

   como está nesse lugar (qual?),
   e como os livros na mesa?
   O que fala falta-me
   em que coração real?

   É duro sonhar e ser o sonho,
   falar e ser as palavras!
   E, no entanto, alguém fala enquanto fujo,
   e falo do que, em mim, foge.

   Sem que palavras alguma coisa é real?
   As filhas sabem-no não o sabendo
   e falam alto fora de mim
   sem falarem nem não falarem.

   Em mim tudo é em alguém
   em qualquer sítio escuro
   como se houvesse um muro
   entre o que fala (quem)? "

Manuel António Pina

http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=MQVi5MFt5M8

Um comentário:

  1. Muito bom, esse poeta!
    "Em mim tudo é em alguém...", o Eu sempre fora
    do lugar, sempre a questionar (-se)
    Não conhecia nada dele. Obrigada, Lê. Tuas postagens estão primorosas!!!

    beijoss

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