quinta-feira, 24 de maio de 2012

Sentimento do tempo



Os sapatos envelheceram depois de usados
Mas fui por mim mesmo aos mesmos descampados
E as borboletas pousavam nos dedos de meus pés.
As coisas estavam mortas, muito mortas,
Mas a vida tem outras portas, muitas portas.
Na terra, três ossos repousavam
Mas há imagens que não podia explicar: me ultrapassavam.
As lágrimas correndo podiam incomodar
Mas ninguém sabe dizer por que deve passar
Como um afogado entre as correntes do mar.
Ninguém sabe dizer por que o eco embrulha a voz
Quando somos crianças e ele corre atrás de nós.
Fizeram muitas vezes minha fotografia
Mas meus pais não souberam impedir
Que o sorriso se mudasse em zombaria
Sempre foi assim: vejo um quarto escuro
Onde só existe a cal de um muro.
Costumo ver nos guindastes do porto
O esqueleto funesto de outro mundo morto
Mas não sei ver coisas mais simples como a água.
Fugi e encontrei a cruz do assassinado
Mas quando voltei, como se não houvesse voltado,
Comecei a ler um livro e nunca mais tive descanso.
Meus pássaros caíam sem sentidos.
No olhar do gato passavam muitas horas
Mas não entendia o tempo àquele tempo como agora.
Não sabia que o tempo cava na face
Um caminho escuro, onde a formiga passe
Lutando com a folha.
O tempo é meu disfarce.

Paulo Mendes Campos, Belo Horizonte, MG - 1922-1991.

7 comentários:

  1. Nossa, fim de tarde ganha, Ci...Ando ausente e eis que venho ao Mínimo e enconto o máximo.

    Beijo grande,

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  2. Ganhamos nós, Tânia!
    Tenho sentido tua falta, viu?

    beijoss

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  3. Respostas
    1. Obrigada, Luíza, tua visita é sempre muito bem-vinda!!!

      beijos

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  4. Cirandeira,





    Há o tempo onde o tempo nos travessa o plexo. Pode ficar mais leve depois disso, ou mais "adensado". O estômago pode se (des)contrair, na dependência do que se toma por tempo ganho, tempo gasto, tempo como chão ou gesso para o nosso mover. Mas não existe retorno à inocência em nenhum dos casos: o descobrir da primeira água, o primeiro passeio de insetos, as músicas cujas estrofes adiante seriam inimagináveis e passam a ser cantadas mentalmente, na antevisão de alguns compassos. Na arte [e só na grande arte isso é possível, jamais numa melodia de quatro acordes pré-desenhados] procuramos lampejos dessa descoberta inaugural, esse estar em estado de interjeição, tão imersos como se fôssemos a criança do primeiro sorriso. Ou da primeira lágrima.


    Bonito texto do Paulo que já fez a travessia deste tempo, tal qual dimensionado desde cá embaixo.




    Um beijo, amiga.

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    1. É verdade, Marcelo, não existe retorno a coisa alguma, pois tudo se renova ou se deteriora de vez; seguimos ou estacamos, a vida tem as suas próprias leis, e nós, por não compreendê-las ou por não aceitá-las tentamos nos ludibriar com alguns esboços de lampejos. Tudo passa...!

      um beijo

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  5. "O tempo ouve-se e não se vê.
    O tempo morre e renasce.
    O tempo está-nos nos ossos.
    Os nossos ossos são também a consciência de que ele existe, para mal do nosso tempo.
    Ou então esperem...
    Melhor!
    Um dia vi: um mendigo de passagem deu uma maçã a outro mendigo sentado na beira da estrada.
    O tempo parou de repente.
    O som dissipou-se no ar.
    Foi naquele gesto que renasci".

    Bernardo Sassetti

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