"Escreverás tu algum dia um livro a meu respeito?", perguntou-me Marco. Era a pausa depois do amor. Estávamos estendidos entre as altas ervas, na encosta da colina, aquecidos por um generoso sol. O céu, por sobre as nossas cabeças, estendia-se até ao infinito. Rochas de granito, fetos e mirto anão por todos os
lados nos envolviam. E o mar azul, enrugado, solitário, sem uma única vela na infindável tarde primaveril começava mesmo ali, no sopé da colina.
Falávamos calmamente libertos de nós próprios. Palavras prudentes, circunspectas. Falávamos daquilo que nesse momento não tinha poder para nos causar sofrimento. Lucidamente especulávamos sobre a ausência, sobre a nossa separação, sobre os nossos universos que se fragmentavam mais e mais. Em nossas vozes desincarnadas e calmas assumíamos a palavra que só emerge nos humanos após o amor.
"Pode ser que venha a escrever qualquer coisa a teu respeito, mas não por agora. Neste momento a alegria que há dentro de mim é tão grande que me contento com vivê-la; o saber-te sempre presente em mim enche-me de alegria. Se tu me deixasses, então talvez, e mesmo por outra razão, talvez pudesse escrever um livro a teu respeito."
"E que outra razão poderias tu ter?"
"A necessidade de comer. Não hesitaria em vender a minha alma para comer. Considero a tigela de arroz o mais respeitável móbil do mundo. Por ele é justo fazer seja o que for. Lançar uma parcela da minha alma às multidões em troca de arroz e vinho não se me afigura sacrilégio."
"Se desejas, bem-amada, negociar com uma ardente paixão", disse Marco, alisando-me as sobrancelhas com o dedo, "é preciso que o faças antes de me teres esquecido completamente, visto que tanto detestas o perfume das recordações".
"Aí está a razão por que escreverei. Desenterrarei todas as minhas impressões, as minhas recordações, porque sou uma profanadora nata. E fá-lo-ei antes que o amor que te tenho desapareça tão inelutavelmente como a maré que deixa a praia molhada, juncada de inúteis destroços, antes que a natureza implacável feche a ferida que me tiveres feito e falsifique a emoção das palavras que tivermos pronunciado. Antes que me seja preciso reabrir as cicatrizes para as fazer verter sangue, essas insensíveis cicatrizes da tristeza e da alegria. Contarei como nos amámos e como lutámos para não sermos destruídos pelos pequenos nadas da existência. E como eles nos destruíram e como nós os esquecemos. Tal como toda a gente.
Porque somos, nem mais nem menos que quaisquer outros, amantes efémeros e imperfeitos num mundo eternamente inconstante.
"Que retórica!", disse Marco. "Achas então que os outros sentem na sua carne tanto prazer e tanta felicidade como nós? Pensas seriamente que um tal amor possa ter fim? Pois eu não, não creio.
E olhou à sua volta, como se procurasse confirmação. Mas nada mais havia senão mirtos, altas ervas, fetos, a encosta, o mar, e nós, dourados pelo sol que nos banhava.
"Querido amor, mesmo as horríveis gentes barrigudas deste mundo supõem amar como nós e também para sempre. Todos os amantes têm a mesma ilusão: supõem-se, a si, únicos e as suas palavras imortais."
"Talvez não passe de uma ilusão", concordou Marco, "mas é a única verdade que tu e eu possuímos. Por conseguinte gozemo-la enquanto pudermos. Porque também pode ser, bem-amada, que tenhamos pouco tempo - muito pouco tempo - para nos amarmos."
E foram estas palavras as únicas verdadeiras que durante aquela tarde pronunciámos.
Han Suyin in A many-splendoured thing / A colina da saudade, edição portuguesa, Círculo de Leitores, 1973
Gostei muito, Marta.
ResponderExcluirNão conhecia.
Tantos autores que não conhecemos, não é?
beiojss
pois é! imensos. só de pensar ...
ResponderExcluireste foi dos livros que li antes de fazer 20 anos:) é um marco, para mim.
bjos