segunda-feira, 6 de agosto de 2012

(Dos sonhos VI): Prometo ser fiel a mim mesma, na alegria e na tristeza

O vestido era feminino e delicado. Uma sobressaia de um tecido que parecia tule e uma bela guirlanda de flores silvestres no tornozelo direito. Eu estava feliz porque estava me preparando para casar comigo mesma. Não havia noivo, havia eu mesma a esperar a hora da cerimônia que me tornaria unida a mim mesma. Esta foi a única vez na minha vida que sonhei com casamento.

Que espécie de sentimento isso despertou? Perguntaria naturalmente o analista. Mas eu já falei da felicidade que era ir ao meu próprio encontro. Um freudiano mais ortodoxo suporia que aí estaria um traço homossexual dissimulado ou qualquer coisa dessas que são ditas de forma superficial por quem não procura conhecer o universo do sonhador, seu território original, seus símbolos pessoais, sua natureza íntima.

Essencialmente sou um ser que anseia por compreender a origem de tudo. Não por acaso tantas vezes preciso descer ao mundo de trevas, percorrer terrenos pantanosos, fazer contato com o meu mundo primitivo. Necessito entender a existência a partir do passado, do começo. E há em mim um incurável anseio cósmico. Eu sempre acreditei que as experiências humanas são reflexos distorcidos de uma realidade superior, cósmica.

No fundo, sempre intuí que a busca pelo outro é uma metáfora para a busca pela completude. Muito cedo, eu via as pessoas, todas elas, como “metades” e entendia a paixão, o amor romântico como uma espécie de ensaio para um amor maior.Cósmico.

Convicções enraizadas na minha alma, não sei como foram formadas, nem onde, mas nasci com um olhar insólito sobre o mundo. De algum modo, eu sempre soube que a procura pelo outro, pelo parceiro, pela cara-metade era apenas um exercício humano que, em algum dia, de algum tempo, nos levaria de volta à inteireza.

Casar comigo mesma era um sonho, um íntimo desejo da alma. Era preciso estar unida a mim mesma para poder realizar minha jornada. A psicologia analítica de Jung esclarece muito sobre as nossas projeções, fala do animus e da anima, arquétipos que representam a parte masculina da mulher e a feminina do homem. Amar, olhado assim, é uma simples projeção. Algumas projeções de animus levaram-me a conhecer muito mais de mim mesma. O homem e a mulher que escolhemos refletem nossa história, nossas doenças, nossas fraquezas, e também força e beleza. Atraímos aquilo que somos.

Mas que tem tudo isso a ver com o meu casamento comigo mesma? Fernando Pessoa traduz isso muito bem no poema Eros e Psique.

Conta a lenda que dormia
Uma Princesa encantada
A quem só despertaria
Um Infante, que viria
De além do muro da estrada.
Ele tinha que, tentado,
Vencer o mal e o bem,
Antes que, já libertado,
Deixasse o caminho errado
Por o que à Princesa vem.
A Princesa Adormecida,
Se espera, dormindo espera,
Sonha em morte a sua vida,
E orna-lhe a fronte esquecida,
Verde, uma grinalda de hera.
Longe o Infante, esforçado,
Sem saber que intuito tem,
Rompe o caminho fadado,
Ele dela é ignorado,
Ela para ele é ninguém.
Mas cada um cumpre o Destino
Ela dormindo encantada,
Ele buscando-a sem tino
Pelo processo divino
Que faz existir a estrada.
E, se bem que seja obscuro
Tudo pela estrada fora,
E falso, ele vem seguro,
E vencendo estrada e muro,
Chega onde em sono ela mora,
E, inda tonto do que houvera,
À cabeça, em maresia,
Ergue a mão, e encontra hera,
E vê que ele mesmo era
A Princesa que dormia.

Talvez eu tenha descoberto muito cedo que eu era o meu príncipe que viria. Eu queria a inteireza dentro de mim. Compreendo que faz parte da evolução humana alcançar esse entendimento um dia, de que nosso maior anseio seja um anseio cósmico. Procuramos pela inteireza. O Outro é uma ponte, a oportunidade de aprendermos a entrega, a importância das duas energias – yin e yang – para a criação. Acredito mesmo que as possibilidades de encontrarmos o parceiro ideal tornam-se mais reais quando realizamos essa cerimônia íntima, o casamento conosco mesmo, a junção dos fragmentos que somos. Para amar é necessário, antes de tudo, amar a si próprio.

“Sim, eu prometo ser fiel a mim mesma em todos os momentos da minha vida. Prometo cuidar de mim nas horas tristes e nas horas alegres. Até que a morte possa então, fazer-me, definitivamente, inteira”. Eu teria feito o juramento se o sonho prosseguisse. Mas acordei quando, em êxtase, eu ainda me vestia para o grande evento.
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4 comentários:

  1. Tania, como tua escrita tá ficando madura. Sempre foi inspiradora e sensível, mas agora parece ainda mais sábia.
    beijoss

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    1. Estou me esforçando, Lelena, para amadurecer e um dia, quem sabe, ficar mais sábia...rs

      Beijão pra ti

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  2. Belo belo texto, Tania. O casamento é difícil, mas precisa ser buscado. Talvez sejam muitos os casamentos ao longo do tempo!

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  3. Acho que sim, Nilson, são vários casamentos, vamos unindo pedaços, fragmentos. Obrigada pela leitura.
    Abraços,

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