terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Dois corpos que caem

Por simples acaso, dois desconhecidos encontraram-se despencando juntos do alto do Edifício Itália, no centro de São Paulo.
- Oi - disse o primeiro, no alvoroçado início da queda - Eu me chamo João. E você?
- Antonio - gritou o segundo, perfurando furiosamente o espaço.
E, só para matar o tempo do mergulho, começaram a conversar.
- O que você faz aqui? - perguntou Antonio.
- Estou me matando - respondeu João - E você?
- Que coincidência! Eu também. Espero que desta vez dê certo, porque é minha décima tentativa. Há anos venho tentando. Mas tem sempre um amigo, um desconhecido e até bombeiro que impede. Você afinal está se matando por quê?
- Por amor - respondeu João, sentindo o vento frio no rosto - Eu, que amava tanto, fui trocado por um homem de olhos azuis. Infelizmente só tenho estes corriqueiros olhos castanhos...
- E não lhe parece insensato destruir a vida por algo tão efêmero como o amor? - ponderou Antonio, sentindo a zoada que o acompanhava à morte.
- Justamente. Trata-se de uma vingança da insensatez contra a lógica - gritou João num tom quase triunfante. - Em geral é a vida que destrói o amor. Desta vez, decidí que o amor acertaria contas com a vida!
- Poxa - exclamou Antonio - você fez do amor uma panacéia!
- Antes fosse - replicou João, com um suspiro. - Duvidoso como é, o amor me provocou dores horríveis. Nunca se sabe se o que chamamos amor é desamparo, solidão doentia ou desejo incontrolável de dominação. O que na verdade me seduz é que o amor destrói certezas com a mesma incomparável transparência com que o caos significante enfrenta a insignificância da ordem. Não, o amor não é solução para a vida. Mas é culminância. Morrer por ele me trouxe paz.
Ante o vertiginoso discurso, ambos tentaram sorrir contra a gravidade.
- E você, como se sente? - perguntou João a Antonio.
Oh, agora estou plenamente satisfeito.
- Então por que busca a morte?
- Bom - respondeu Antonio - me assustou descobrir um fiasco primordial: que a razão tem demônios que a própria razão desconhece. Daí, preferí mergulhar de vez no mistério.
- Sim, da razão conheço demasiados horrores. Mas que mistério é esse tão importante a ponto de merecer sua vida?
- Não sei - respondeu Antonio - Mistério é mistério.
- Mas morto você não desvendará o mistério! - protestou João.
- Por isso mesmo. O fundamental no mistério é aguçar contradições, e não desvendar. Matar-me, por exemplo, é bom na medida que me torna parte do enigma, de certo modo, o agudiza. Tem a ver com a fé, que gera energias para a vida. Ou para a história, quem sabe...
- Taí um negócio que perdí: a fé. Deus pra mim... - e João engasgou.
- Ora - revidou Antonio vivamente. - A fé nada tem a ver com Deus, que se reduziu a uma pobre estrela anã de energias tão concentradas que já nem sai do lugar. Deus desistiu de entender os homens, e virou também indagador. Sem Deus nem Razão, a única fé possível é mergulhar neste abismo do mistério total.
- Mas para isso é preciso ao menos saber onde está o mistério - insistiu João com os cabelos drapejando ao vento.
-Ué, o mistério está em mim, por exemplo, que me mato para coincidir comigo mesmo. Mas há mistério também em você: seu morrer de amor é o mais impossível ato de fé. Graças a ele, você participa do mistério. Porque se apaixonou pelos abismos.
João olhou com olhos estatelados, ao compreender. E Antonio, que já faiscava na semi-realidade da vertigem, gritou com todas as forças:
- Há sobretudo este mistério maior de estarmos, na mesma hora e local, cometendo o mesmo gesto absurdo e despencando para a mesma incerteza, por puro acaso. Além de cúmplices, a intensidade desse mergulho nos tornou visionários. Você não vê diante de si o desconhecido? É que já estamos perfurando a treva.
E como tudo de fato reluzia, João também ergueu a voz.
- Sim, sim. É espantoso o brilho do absurdo.
- E agora - disse Antonio bem diante do rosto de João -falemos um pouco de permanência. Você gosta de meus olhos azuis?
Foi quando os dois corpos se estatelaram na Avenida São Luís.
Conto de João Silvério Trevisan, Bonito (SP)

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