Nos vimos centenas de vezes sem trocarmos uma palavra sequer. Sabia de alguns de seus hábitos e percebia quando alguma coisa não ia bem pelas suas feições. Não custava nada que nos déssemos bom-dia, pelo menos, nos encontros frequentes e quase diários, mas não – parecia que combinamos não nos olharmos nos olhos nunca e evitarmos falar com quem quer que fosse quando estivéssemos relativamente próximos.
Mas eu imaginava sua voz pelo contorno do rosto e pelo nariz pontudo. Sabia que soaria grave, bem grave, seu primeiro cumprimento, algo como: bom-dia, como tem passado? Ele parecia formal. Não que o fosse de fato, mas receava fugir às convenções e parecer inadequado àqueles que não privavam de sua intimidade. Fazia um esforço enorme para não vestir azul mais de duas vezes por semana, receando que algum entendido nas cores da alma pudesse enquadrá-lo equivocadamente em algum tipo de definição. .
Frequentemente, caminhamos paralelamente, em lado opostos da calçada, e era quase constante o alinhamento que nossos passos insistiam em criar. Desacelerava e ele também, a um só tempo, com o mesmo intuito de deixar que o outro passasse à frente. Quando percebíamos, acelerávamos os passos, e novamente estávamos alinhados.
Tinha quase certeza que ele possuía dois nomes. Algo como Luís Carlos ou Paulo Henrique. Também acreditava que a família o chamava por um diminutivo que o incomodava, mas do qual já não havia possibilidade de se livrar. Ele morreria se eu ouvisse alguém dos seus chamando-o à minha frente e talvez por isso antes de abrir o portão assegurava-se sempre de que estivesse só, o que acontecia sempre que o via sair de casa.
Certa vez passei e percebi que a parede externa de seu muro ganhara uma cor forte, bastante diferente do branco encardido ao qual eu já me acostumara. Naquele dia ele me pareceu sem jeito. Algo em si parecia querer desculpar-se por um exibicionismo que não era seu, por uma escolha, uma decisão que não fora sua, mas que – suas feições me diziam – não houve como evitar.
Pouco antes da Páscoa, ele apareceu de cabelos cortados. De um lado, tentava parecer natural, encarando o fato de ter cortado o cabelo como algo rotineiro; mas entendi que aquela naturalidade era forçada. No fundo, os poucos centímetros perdidos no cabelo davam-lhe a sensação de nudez. Intimamente pensava no que estaria pensando eu a respeito do novo – embora discreto – corte. Eu nem ousava levantar os olhos em sua direção. Aliás, eu o via sem olhar de frente e entendia cada gesto seu, por mais discreto que fosse.
Ele andava cabisbaixo nos últimos tempos. O seu silêncio parecia mais pesado. Não deixou de perceber a minha presença todas as vezes em que nos encontramos, mas já não respirava com a mesma leveza de antes. O que teria acontecido? Fosse o que fosse, eu sabia que poderia dizer algo que aliviasse a sua angústia, o seu medo, a sua preocupação – .eu sei lá o quê. Sabia que podia e sentia que ele pensara em mim como uma possível ouvinte capaz de confortá-lo naquela hora... difícil, talvez. Ainda assim, continuamos a passar um pelo outro sem nada falar. Nenhum som, nenhum gesto, nada que explicitasse a cumplicidade que cultivamos íntima e secretamente.
Por vários dias encontrei-o do mesmo modo – olhar inquieto, testa franzida, passos vagarosos e pesado. Pensei em escrever-lhe uma mensagem anônima e deixar na caixa de correspondência de sua casa. Não sabia bem o que queria dizer, o que poderia dizer, uma vez que, de fato, eu não sabia o que acontecera em sua vida. Pensei em algo como: “tenha esperança, não desanime, há sempre saída”, mas me dei conta do ridículo da situação, além do que não sabia se a mensagem cairia nas mãos certas.
Uma semana passara-se sem que eu o visse. Alternei horários de saída no intuito de encontrá-lo, quem sabe, saindo um pouco mais cedo ou um pouco mais tarde de casa – mas...nada, ele parecia ter evaporado! Um estranho incômodo começou a tomar conta de mim. De manhãzinha, eu passava quase correndo pela portão alto que tantas vezes se abrira tão logo eu dobrava a esquina que dava acesso à parte da rua onde o via sair todos os dias. E foi assim por mais alguns dias, até que, numa segunda-feira, assustei-me ao avistar de longe uma placa grande no portão verde e pesado onde morava o estranho íntimo que eu parecia conhecer tanto. Em letras pretas e grossas, eu podia ler: “Vende-se”. Logo abaixo, o nome da imobiliária e os telefones de contato. Era evidente que a casa estava vazia. Impulsionada por algo que eu não saberia explicar, caminhei lentamente até a casa que eu sempre olhara de longe. Aproximei-me do portão e pude enxergar, quase que de imediato, um papel branco, enrolado como um canudo, entre os cilindros de ferro do portão verde. Sem que tivesse tempo de pensar, apanhei o papel, olhando para os lados, a fim de assegurar-me de não estar sendo vista por ninguém. Com as mãos um tanto trêmulas, abri o papel e deixei cair algo que se encontrava dentro dele – uma flor alaranjada, já com a aparência de ressecada. Incrédula, li a mensagem escrita com letras desenhadas por mãos não menos trêmulas do que as minhas naquele momento: “Continuo gostando do azul. Mas a esperança morreu. Nem sei o seu nome, mas agradecerei sempre o seu silêncio cúmplice”. Era pra mim a mensagem? Sim, sim, eu sabia que era. Mas podia não ser também. Quem era ele, qual seria o seu nome? Mas já se passou tanto tempo, nem sei por que estou lembrando disso agora.