quinta-feira, 29 de março de 2012

Um poema de Jorge Luís Borges





Poema dos dons


Ninguém rebaixe a lágrima ou rejeite
Esta declaração da maestria
De Deus, que com magnífica ironia
Deu-me a um só tempo os livros e a noite.

Da cidade de livros tornou donos
Estes olhos sem luz, que só concedem
Em ler entre as bibliotecas dos sonhos
Insensatos parágrafos que cedem

As alvas a seu afã. em vão o dia
Prodiga-lhes seus livros infinitos,
Árduos como os árduos manuscritos
Que pereceram em Alexandria.

De fome e de sede (narra uma história grega)
Morre um rei entre fontes e jardins;
Eu fatigo sem rumo os confins
Dessa alta e funda biblioteca cega.

Enciclopédias, altas, o Oriente
E o Ocidente, centúrias, dinastias,
Símbolos, cosmos e cosmogonias
Brindam as paredes, mas inutilmente.

Em minha sombra, o oco breu com desvelo
Investigo, o bácuo indeciso,
Eu, que me figurava o Paraíso
Tendo uma biblioteca por modelo.

Algo, que por certo não se vislumbra
No termo acaso, rege, estas coisas;
Outro já recebeu em outras nebulosas
Tardes os muitos livros e a penumbra.

Ao errar pelas lentas galerias
Sinto às vezes com vago horror sagrado
Que sou o outro, o morto, habituado
Aos mesmos passos e nos mesmos dias.

Qual de nós dois escreve este poema
De uma só sombra e de um eu plural?
O nome que me assina é essencial,
Se é indiviso e uno esse anátema?

Groussac ou Borges, olho este querido
Mundo que se deforma e que se apaga
Numa empalidecida cinza vaga
Que se parece ao sonho e ao olvido.

8 comentários:

  1. A Biblioteca Infinita é como o jogo de espelhos em Borges: imagem remetendo à imagem, palavra remetendo à palavra, num jogo sem fim. É a imagem mítica da Rede de Indra: o Universo tecido de tal forma que, no entrecruzamento de uma rede-teia, joias [mentes-como-joias, consciências-de-si] cintilam e refletem todas as demais joias e coisas, segundo sua cor e quilate específicos. Detenha-se um pouco nas implicações dessa imagem [o protótipo de um Universo Fractal, mais de seis séculos antes de Cristo].


    Transpondo a Rede de Indra para a Biblioteca Infinita: joguemos qualquer pessoa numa Biblioteca Infinita; ela fará um percurso finito, segundo o repertório prévio que traga [que verbetes procurar, a partir dos que traz consigo] e suas buscas existenciais legítimas [que verbetes lhe parecem mais necessários, a partir de velhas ou novas perguntas urgentes, algumas decorrentes dos verbetes recém-explorados + autobiografia]. Os percursos seriam finitos e irrepetíveis. A cegueira de Borges selou com um "emblema de finitude" essa inevitabilidade [embora ele ainda pudesse ouvir Maria Kodama ler para ele, mas já sabia o que pedir!, segundo a lógica apontada acima]. Borges parecia se debater um pouco com isso: com os limites epistemológicos e ontológicos do estar-no-mundo.



    No mais [ou, filosofia à parte], o texto dele é belo, como sempre.




    Um beijo, Cirandeira.

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  2. É sempre um deleite reler esse poema. Há sempre algo que nunca vi, já tendo quase na memória todo o poema.

    Excelente!

    Beijos

    Mirze

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  3. Eu nunca releio Borges também, eu leio sempre. E lembro, ainda da primeira vez, quando ele, literalmente, me prendeu num labirinto e ia ao fim e voltava ao começo da leitura.

    Ci, continuo sem conseguir comentar no Cirandeira, mas já com esperança, porque hoje consegui comentar no Desinformação Seeletiva, que estava também impedido pra mim.

    Beijos e grata pela lembrança de Borges...

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  4. Muito bom esse poema. Em "Borges, Oral", no ensaio-conferência "A Cegueira", Borges fala da "Magnífica ironia" de terem lhe dado a direção da Biblioteca Nacional, quando ela estava já quase completamente cego, e terem feito o mesmo no passado com Paul Groussac, no passado.
    O poema é lindo e flui. Acho a primeira estrofe inesquecível, quando penso na cegueira de Borges.
    Para ele a palavra "acaso" sempre foi pouco pra justificar essa estranha trama que é o universo.

    Beijos.
    Raul

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  5. Não me atrevo a falar sobre Borges, acho-o tão denso, tão profundo,
    que não quero correr esse risco! Ele era um escritor genial, amargurado com a cegueira que o fazia enxergar para além das bibliotecas. Quanto mais perdia a visão dos olhos, mais percebia o
    universo que nos circunda, e mais recorria aos símbolos, às metáforas, mais penetrava no universo onírico!

    Um beijo a todos vocês

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    1. Cirandeira,



      Para nossa (in)felicidade, sonha-se, também, de olhos fechados. E essa é uma parte da vida tão real e legítima quanto aquela legitimada pelos "olhos abertos de todos os nossos acordados pares". Aquela da "vigília".

      Isso sem falar nos outros sentidos abertos a Borges. Sua fantasia [ou ânsia] por Infinitude precede sua cegueira. E esta Infinitude é colocada, frequentemente, no "saber", ou no "ver como decifrar" [a visão como decifração, mais do que deleite], como no conto "A escrita do deus", onde as manchas do jaguar são "a totalidade da descrição do mundo" [portanto, "a própria escrita do deus"] para o prisioneiro-mago-sacerdote asteca. Ali, o Todo era apreensível na clausura ["o piso menor que um círculo máximo"], e maior [este Todo apreensível no "pouco"] do que a soma de muitas partes. Era cabível em código. Um Todo codificado/codificável. Na imagem recorrente da biblioteca infinita, parece que pela soma dos muitos é que se reconstituiria a "escrita" do Todo. O conto borgeano é complementar [ainda que anterior!] ao lamento borgeano. Parte da densidade que vc fala [há mais, muito mais, claro] está em trabalhar nos pólos, com ambos, em ambos. Cabe a biblioteca infinita no dorso do jaguar?


      Outro beijo, Cirandeira.

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  6. Dios, en su magnífica ironía,
    me dio el astigmatismo y la miopía.

    Si este mal mi vista no supera,
    tarde o temprano vendrá fatal ceguera.

    Y hasta allí llegará el paralelismo:
    parecido, sí; mas no lo mismo.

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