domingo, 3 de outubro de 2010

A primeira vez que avistei o Brasil...

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Muitos, comuns eus e nós, pensam que há ciência para contar a primeira vez, a última vez, a vez intermédia, mas não tem aplicação geométrica que possa valer o tamanho que toma uma voz quando quase pisa uma terra distante pela primeira vez; pode dar vontade de beijar o terreiro, a terra terrena que se pisa a primeira vez, mas há um mal muito maior para quem a memória falha e não se coordena com a aflita realidade dos acontecimentos sucedidos: em que oportuno momento, é segunda vez, só para afirmar que houve a primeira?

Eu, sozinho, com essas dúvidas que me assaltam a todo o instante, quais criminosas de guerra, as dúvidas, que nunca haverão de ser punidas, tenho por certo que a primeira vez que avistei o Brasil, estava um dia carregado no mundo com o peso das nuvens parecidas com esponjas de anjo, com o céu contorcido por cinzentos cristais de chuva ambulante, e cá dentro, a ameaça, o alerta laranja de vendaval crescia em cada instante meu. Da primeira vez que avistei o Brasil, asseguro que não foi com sorriso de Pedro Cabral, nem com lamúria de tesoureiro do Rei; aterrei em Minas Gerais, com uma rodela preta de ananás fininho e com cheiro a vinil, que coloquei no meu velho Elac Miracord, batido com o tempo, batido com as tempestades de areias e poeiras, e todas as intempéries do homem que nele se gasta: o gira-discos e o seu meio mundo. 

Tomei de leve o braço que tornei tangencial com recurso a uma moeda de vinte e cinco tostões, e do velho aparelho, deixei a agulha no seu cantilever sulcar como a um rio invisível, negro tamanho, o primeiro som, o arranhar suave da máquina que procura um cais onde aportar, que toca a primeira espiral com dor, mas ao final do primeiro contorno, vinil e agulha, rio e barco, se encontram como o par desajeitado de Romeu e Julieta; o primeiro som, a primeira aterragem, a primeira passagem à velocidade do som, é marco grande como o padrão que os meus antigos soltaram nas praias do mundo, por aí a fora… este não! Este é evocação, é trinado de pássaro em viagem por aquém, por ali, por sobre as copas de todas as árvores do mundo: da primeira vez que avistei as terras da verdadeira cruz, fiz na companhia de um anjo… e que melhor passageiro de bordo? Um poema sonoro se solta no ar, neste ar comprimido que me envolve como uma cápsula do tempo, de tempo, avivado pelas notas que sopram tempestades neste cubículo de planeta à deriva, que sobem paredes meias e meias vontades e evocação o muito para lá do que se viu… cheguei ao Brasil!

Qual teia de vida, qual vida soprada, qual viagem “nessa procura toda de me lapidar nesse momento agora, de me reciar, de me gratificar de custo alma, eu sei”, qual poesia que se encosta nas paredes do mundo, qual ar que rareia no ar que ondeia porque “alma vai além de tudo que o nosso mundo ousa conceber, casa cheia de coragem, vida tira a mancha que há no meu ser, te quero ver, te quero ser”, te quero ver Sapucaí e Rios Verde de Três Pontas, te quero ver no Três de Julho em Três Pontas, que o Capitão Milton me espera na Avenida Ipiranga, sem saber, e voz de trovão, esse delicado paramento de anjo, traz-me até ao invólucro de corpo, deitado neste lugar, neste quarto com a persianas encerradas e porta na companhia de sua chave, onde adormecendo quase, num sono justo de sonho e lugar, de momento irrepetível, a leitura em alta voz da harmonia de Aladino que me concede um desejo, nesta manhã mal amanhada pelo mundo: da primeira vez que avistei o Brasil, adormeci no meu quarto, lençol e almofada fazendo as vezes de avião, de tapete voador para coração simples e amador, em Minas aterrei, minha terra primeira do Brasil: vinil e capa de menino pegando na estrada de vida a um canto e Capitão Milton sorriam, na primeira vez que toquei nas terras do Brasil, sem nunca ter saído do meu quarto.




Ainda hoje, tantos anos passados, recordo essa viagem, quando separo os meus vinis, só para escutar um, ao acaso, e está sempre esse na primeira fila: Anima do Seu Milton Nascimento.

Colmeal Velho, 27 de Outubro de 2009


[aparte breve: este texto, com quase um ano de escrita, rascunhei este texto para uma revista online a qual nunca me deu uma resposta, breve que fosse, de interesse ou não; como tal, não vejo mais vinculo de ordem alguma para não o editar… até porque a haver, já foi cumprido com a minha paciência de aguardar uma resposta: paciência!]

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2 comentários:

  1. Acho que foi Caetano Veloso que disse - em um DVD em homenagem ao Milton - que Minas é o centro do Brasil. Eu tenho o vinil desse disco que realmente muito bom essa música é maravilhosa - e com a participação, se não me engano, do grupo Uakti.

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  2. Ver Milton é como ver a essência do que há de melhor aqui.
    bj

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