quarta-feira, 21 de julho de 2010

A Primeira Lágrima do Náufrago

.


“Mesmo que a vida mude os nossos sentidos
E o mundo nos leve para longe de nós
E que um dia o tempo pareça perdido
E tudo se desfaça num gesto só

Vou guardar cada lugar teu
Atado em mim, a cada lugar meu
E hoje apenas isso me faz acreditar
Que eu vou chegar contigo
Aonde só chega quem não tem medo de naufragar.”

de Mafalda Veiga


Ao longe no horizonte, todas as coisas do mundo mostram, aparentemente e com dignidade, a sua calma. Uma linha, ao longe, que longinquamente serve sorrateira de quebra entre o céu e o mar salgado, concentra em si as obras da natureza e do seu Criador. O imenso não cobre completamente a disponibilidade do seu olhar, mas o náufrago compreende que o seu diálogo já não é monólogo, mas comunhão. Com a madrugada misturou-se um novo dia, com a solidão a compreensão. Recordou uma vez mais a si próprio, tal como compreendera Galileu, “que todas as verdades são simples de compreender quando são descobertas; a questão é descobri-las”; lera ao acaso num livro há muito desaparecido da sua biblioteca, mas agora, diante do horizonte, não só o livro desaparecera, como toda a sua biblioteca.

A verdade do náufrago agora é o imenso sorriso dos conformados. Um sorriso calmo, sereno, contemplando com os olhos o que o seu coração demasiado ocupado não o deixara alguma vez observar com minúcia: milhares de conchas espalhadas ao acaso pela praia, as ondas irregulares espalhadas sem ordem pela areia que escalda no sol do meio-dia, que gela na noite cerrada. As pedras que tomam estranhas formas humanas ao anoitecer, o mar que as esculpe incessantemente, dia após dia, maré que vaza para voltar a encher, a eterna desordem do mundo, manejada por uma mão invisível, que não se descortina com os olhos cerrados, que não se descortina nos livros que ficaram para trás, embora a vida também se aprenda neles, todas as vidas que os compilaram.

Com a madrugada, uma vez mais, diante do fogo improvisado da praia, o náufrago recordou uma vez mais, uma recordação tanto mais distante quanto relembrada; os primeiros dias, as primeiras fatídicas sextas-feiras, os amigos distantes que não perdia há muito, os pais com quem partilhava a mesa do seu pequeno apartamento todos os domingos à hora do jantar, as filas de trânsito que o atulhavam nas artérias doentes da cidade, nas aortas e coronárias da vida moderna, infeliz à sua maneira, mas moderna. Nessas madrugadas sem fim, recordava os discos que ainda estariam desarrumados das caixas à solta pela sala, e o último que deixara na aparelhagem já de pouca fidelidade decerto que seria Song to Siren, a melodia que o acompanhava já tão distante, mas que as ondas devolviam de quando em vez, parecendo uma vez, uma vez mais a Elizabeth Frazer a sussurrar de perto nos seus ouvidos, dentro do seu sangue que ia esquecendo aurora após aurora, os sons, os cheiros da cidade imensa, a imensidão do coro anónimo, tão próximo, agora tão distante.

Imaginava por vezes a caixa do correio atulhada de publicidade sem rosto nem destino, das facturas que ficaram por liquidar, dos avisos já consumados de que o seu pequeno apartamento iria falecer anonimamente, sem electricidade, sem gás, sem televisão por cabo, sem telefone fixo (o móvel há muito que se afogou, por ali, naquele horizonte), sem prestação do automóvel que porventura teria sido removido, aparentemente abandonado, involuntariamente esquecido, talvez vasculhado vezes sem conta por ladrões menos atentos que o primeiro. O carteiro, imaginava o Sr. Serafim que cumprimentava por vezes, já atrasado para o emprego, «hoje não há nada para si, menino, até amanhã. Tenha cuidado com as pressas, nunca se sabe!». Nunca se sabe, se o amanhã será vizinho próximo do ontem, se a ordem dos dias muda algum dia, se o sentido do trânsito mudará alguma vez o seu próprio rumo, se o nosso corpo resistirá às fragilidades, às incertezas do nosso próprio rumo. Um dia náufragos em terra firme, noutro dia, náufrago de verdade como nos livros de aventuras.

Aqui, o náufrago nada tem, apenas a si próprio se pertence. Nem contas, nem amigos próximos ou distantes, salvo o marulhar das ondas eternas e das gaivotas que nem sempre anunciam o vendaval. Aqui nada se cobra, nem portagens, nem viagens de autocarro. A si próprio se pertence, às palavras que recortou lentamente dos poemas maiores, dos pensamentos que por vezes lhe foram sendo emprestados, os seus amigos de sempre, do Emerson, do Henry Thoreau, do Jobim que se lembra: “Toda vez que uma árvore é cortada aqui na Terra, eu acredito que ela cresça outra vez em outro lugar – em algum outro mundo. Então, quando eu morrer, este é o lugar para onde quero ir. Onde as florestas vivem em paz.”

Não sei como naufragou este náufrago, todavia nem é o mais importante. Sozinho, na sua ilha, sem Crusoes nem seus criados Sexta-feira, julga ter encontrado um caminho, sem que aparentemente se descortinem quaisquer trilhos. Sozinho, numa intermitência da imensidão, para os “muitos” da sua vida, perdeu-se, para si encontrou-se acidentalmente. No sonambulismo duma garrafa que colocará um dia no oceano a mensagem que espero encontrar numa praia qualquer, numa onda qualquer:

Não estou perdido. Perdidos estão os náufragos que procuram nas ondas, nas marés, um barco, um sinal que os encaminhe de regresso a casa.
Nesta ilha, sem caminhos, nem becos, nem auto-estradas, tudo está por fazer.
Aqui, nesta ilha deserta, já não tenho medo de naufragar.

Então, também naufragando, sorrirei. 


s/d, [2005?]

[texto anteriormente editado Na Linha das Fronteiras, o qual sinto a necessidade de resgatar, muitas vezes, ao longo do percurso]

3 comentários:

  1. Gosto muito desse náufrago por opção e não por desespero.

    ResponderExcluir
  2. Leonardo, achei maravilhsamente lindo esse texto.
    A parte que me tocou muito:"-As pedras que tomam estranhas formas humanas ao anoitecer, o mar que as esculpe incessantemente, dia após dia, maré que vaza para voltar a encher, a eterna desordem do mundo, manejada por uma mão invisível, que não se descortina com os olhos cerrados, que não se descortina nos livros que ficaram para trás, embora a vida também se aprenda neles, todas as vidas que os compilaram."
    Penso que temos no dia a dia sempre encher mesmo nossa mente e coração de conteúdo de escolhas que nos de reciprocidade e enriqueçam a alma permitindo que a desordem se reorganize dentro de nós. Naufragar? Por que? Aprender melhor! E o que ficou para trás já nos fornece uma bagagem para melhor navegar e jamais naufragar.
    Obrigada por esse lindo Texto.
    Com amor e carinho,
    Sílvia

    ResponderExcluir