sexta-feira, 30 de julho de 2010

De quando havia Musa....!?

Rio Antigo - Vendedor de galinhas (1919) - skyscrapercity


A MUSA DAS RUAS É A MUSA que viceja nos becos e rebenta nas praças, entre o barulho da populaça e a ânsia de todas as nevroses, é a Musa igualitária, a Musa-povo, que desfaz os fatos mais graves em lundus e cançonetas, é a única sem pretensões porque se renova como a própria Vida. Se o Brasil é a terra da poesia, a sua grande cidade é o armazém, o ferro-velho, a aduana, o belchior, o grande empório das formas poéticas. Nesta Cosmópolis, que é o Rio, a poesia brota nas classes mais heterogêneas. A câmara regurgita de vates, o hospício tem dúzias de versejadores, as escolas grosas de nefelibatas, a cadeia fornadas de elegíacos. Onde for o homem lá estará à sua espera, definitiva e teimosa, a Musa. Se tomardes um bonde modesto, encontrareis o palpite do bicho em versos, nas costas do recibo; se entrais nos tramways de Botafogo, o recibo convida V. Exas. numa quadra a ir a Copacabana. Os cafés são focos de micróbio rímico, os blocos de folhinha, as balas de estalo, as advinhações dos pássaros sábios, as polianteias, esse curioso gênero de engrossamento tipográfico e indireto, as tabuletas, os reclamos, os jornais proclamam incessantemente a preocupação poética da cidade, o anônimo mas formidável anseio de um milhão de almas pelo ritmo, que é a pulsação arterial da palavra...O verso domina, o verso rege, o verso é o coração da urbs, o verso está em toda a parte como o resultado absoluto das circunvoluções da cidade. E a Musa urbana, a Musa anônima, é como o riso e o soluço, a chalaça e o suspiro dos sem-nome e dos humildes.
A Musa urbana! Ela é a canção, começa com os povos na história, e talvez tivesse, como o homem, a sua pré-história. Contar-lhe a idade é tentar um mergulho intérmino na clássica noite dos tempos. O primeiro homem, para dar expressão à ideia, deu-lhe o ritmo; a primeira tribo, para exprimir os sentimentos mais complexos, descobriu a cadência. A civilização é a apoteose do verso popular, porque mais nitidamente acentua a facilidade de exprimir da massa ignorante. Os gregos faziam modinhas a todo o instante e a todo o propósito, e davam para cada uma denominação especial. Antes de saber ler tinham o sentimento do metro poético, e é o grave Aristóteles que nos faz sentir esta ridente ideia: canção e lei eram uma e a mesma palavra entre os helenos.

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As artes são por excelência ciências de luxo. A modinha, a cançoneta, o verso cantado não é ciência, não é arte pela sua natureza anônima defeituosa e manca: é como a voz da cidade, como a expressão justiceira de uma entidade a que emprestamos a nossa vida - colossal agrupamento, a formidável aglomeração, a urbs, é uma necessidade da alma urbana e espontânea vibração da calçada.

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Os poetas da calçada são as flores de todo o ano da cidade, são a sua graça anônima, a sua coquetterie, a sua vaidade anônima e a sua atração - porque afinal, o próprio Platão , que julgava Homero um envenenador público, considerava o poeta um ser leve, alado e sagrado.



"A Musa das Ruas", in A alma encantadora das ruas - João do Rio (pseudônimo de Paulo Barreto(1881-1921)

4 comentários:

  1. Meu sonho dourado é entrar numa máquina do tempo e desembarcar no Rio antigo. Percorreria a rua de Matacavalos em Botafogo, a Lapa, o Paço Imperial, subiria até Santa Tereza e depois iria fazer uma visita ao oficial tabelião e adquiriria -- com poucos contos de réis, uma bela fazenda em Copacabana, Ipanema ou Leblon.

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  2. Como diria um habitante da rua de Mata Cavalos:
    "Sonha!, meu nego, e serás feliz"!!!!

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  3. Olá,
    Adorei o texto, mas não conheço nada dele. Vou pesquisar...João do Rio.
    Quanto a imagem do post do Drummond, achei na net, também achei interessante...
    Obrigado pela visita ao Biricuticu´s, pelo comentário, e pela sugestão de leitura...
    Vou embarcar ainda hoje em "Vidas Secas", do Graciliano, pra faculdade.
    Um grande beijo,
    Ale

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  4. Oi Ale, a "viagem" com Graciliano será árdua,
    mas muito boa, vale a pena. Encomendei na Cultura, "A terra dos meninos pelados", um livro dele que está com edição esgotada. Tô
    "louca" pra ler!

    Um beijo pra ti e BOA VIAGEM!!!

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