quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Carta para Josefa, minha avó




Tens noventa anos. És velha, dolorida. Dizes-me que foste a mais bela
rapariga do teu tempo – e eu acredito. Não sabes ler. Tens as mãos
grossas e deformadas, os pés encortiçados. Carregaste à cabeça
toneladas de restolho e lenha, albufeiras de água. Viste nascer o sol
todos os dias. De todo o pão que amassaste se faria um banquete
universal. Criaste pessoas e gado, meteste os bácoros na tua própria
cama quando o frio ameaçava gelá-los. Contaste-me histórias de
aparições e lobisomens, velhas questões de família, um crime de morte.
Trave da tua casa, lume da tua lareira – sete vezes engravidaste, sete
vezes deste à luz.
Não sabes nada do mundo. Não entendes de política, nem de economia,
nem de literatura, nem de filosofia, nem de religião. Herdaste umas
centenas de palavras práticas, um vocabulário elementar. Com isto
viveste e vais vivendo. És sensível às catástrofes e também aos casos
de rua, aos casamentos de princesas e ao roubo dos coelhos da vizinha.
Tens grandes ódios por motivos de que já perdeste a lembrança, grandes
dedicações que assentam em coisa nenhuma. Vives. Para ti, a palavra
Vietname é apenas um som bárbaro que não condiz com o teu círculo de
légua e meia de raio. Da fome sabes alguma coisa: já viste uma
bandeira negra içada na torre da igreja. (Contaste-me tu, ou terei
sonhado que o contavas?) Transportas contigo o teu pequeno casulo de
interesses. E, no entanto, tens os olhos claros e és alegre. O teu
riso é como um foguete de cores. Como tu, não vi rir ninguém.
Estou diante de ti, e não entendo. Sou da tua carne e do teu sangue,
mas não entendo. Vieste a este mundo e não curaste de saber o que é o
mundo. Chegas ao fim da vida, e o mundo ainda é, para ti, o que era
quando nasceste: uma interrogação, um mistério inacessível, umas
coisas que não faz parte da tua herança: quinhentas palavras, um
quintal a que em cinco minutos se dá a volta, uma casa de telha-vã e
chão de barro. Aperto a tua mão calosa, passo a minha mão pela tua
face enrijada e pelos teus cabelos brancos, partidos pelo peso dos
carregos – e continuo a não entender. Foste bela, dizes, e bem vejo
que és inteligente. Por que foi então que te roubaram o mundo? Mas
disto talvez entenda eu, e dir-te-ia o como, o porquê e o quando se
soubesse escolher das minhas inumeráveis palavras as que tu pudesses
compreender. Já não vale a pena. O mundo continuará sem ti – e sem
mim. Não teremos dito um ao outro o que mais importava.
Não teremos realmente? Eu não te terei dado, porque as minhas palavras
não são as tuas, o mundo que te era devido. Fico com esta culpa de que
me não acusas – e isso ainda é pior. Mas porquê, avó, porque te sentas
tu na soleira da tua porta, aberta para a noite estrelada e imensa,
para o céu de que nada sabes e por onde nunca viajarás, para o
silêncio dos campos e das árvores assombradas, e dizes, com a
tranquila serenidade dos teus noventa anos e o fogo da tua
adolescência nunca perdida: “O mundo é tão bonito, e eu tenho tanta
pena de morrer!”.
É isto que eu não entendo – mas a culpa não é tua.

José Saramago

4 comentários:

  1. Esse Saramago era mesmo um gênio. No ano passado, quando assisti o José e Pilar, derramei-me em águas e risos. Ainda não consegui o filme. Mas hei!
    beijoss

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  2. Que texto emocionante! Quantas verdades explícitas e tantas outras escondidas...

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  3. TOCANTE! COMOVENTE!
    CRISTINA

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